Preso ao tempo, o renomado jornalista-sociólogo Juca Kfouri segue ligando sua imagem às propostas de transformação dos clubes brasileiros em empresa.
Por Irlan Simões
Não preciso me alongar para tratar do respeito que Juca Kfouri merece pela sua longa carreira de jornalista. Basta informá-los que foi o principal combatente, no campo do jornalismo, dos desmandos dos chamados “cartolas”, mesmo em tempos de regime militar. Juca peitou frontalmente esses que foram, durante um bom tempo, os mediadores dos poderosos com um dos principais elementos culturais do país, em troca de favores e prestígio.
Até por nutrir o respeito pela história do referido, acompanho com muita atenção as suas posições públicas. E nada, nesse tempo todo, surpreende tanto quanto a leitura de Juca Kfouri sobre a empresarização do futebol brasileiro. Muito infelizmente, pelo seu viés negativo, em leituras mecânicas e superficiais.
De tanto focar na discussão da longevidade dos mandatos, dos contratos espúrios e dos desmandos burocráticos dos cartolas brasileiros, Juca Kfouri estagnou nas discussões do futebol nacional. Hoje, parece uma personagem esculpida em um bloco de gesso, preso nas engrenagens de alguma máquina do tempo.
Vou tratar desse assunto em três momentos, para deixar clara a minha atual rejeição às formulações de Juca Kfouri sobre a realidade do futebol brasileiro. Primeiro resgatarei o seu papel nos anos 1990; depois analisarei os pontos de sua avaliação sobre os fracassos retumbantes do futebol-empresa nos anos 2000; e por fim levanto como Juca tem ajudado a reconstruir o movimento do futebol-empresa nos tempos atuais. Encerrarei esse texto explicando o motivo de achar que sua posição deveria ser outra.
Anos 1990: garoto-propaganda do futebol-empresa
Logo nos primódios dos anos 1990, com a “redemocratização” e o auge dos discursos privatistas dos jovens políticos neoliberais, o futebol brasileiro entrava na rota das discussões pela sua “modernização”, espelhado em mudanças que ocorriam no futebol europeu. Do outro lado do Oceano Atlântico, os países aprovavam, ano após ano, novas leis para estabelecer os clubes de futebol como Sociedades Anônimas. Isto é: empresas.
Foi assim que Lei Zico e Lei Pelé se sucederam para “modernizar” o futebol brasileiro. Por um lado buscava tratar de um assunto importante na regulamentação da profissão do jogador de futebol (apesar de alguns efeitos dramáticos que não caberiam nesse texto); por outro lado propagandeou a necessidade de uma nova legislação que obrigasse os clubes brasileiros a se transformar em empresa, em diferentes formatos. Um deles propunha a separação do departamento de futebol do resto de toda a instituição, para fins de dar novos contornos jurídicos e administrativos ao produto maior do esporte nacional (consequentemente relegando todos os outros ao esquecimento).
Juca Kfouri entra no meio dessa história como algo análogo ao “caçador de marajás” no mundo do futebol. Já reconhecido nacionalmente como o corajoso jornalista que enfrentou os cartolas diversas vezes, caberia a ele servir de símbolo para essa “modernização” empresarizadora. Afinal, o argumento central para a nova legistlação era de que o gigante futebol brasileiro estava em decadência por conta do amadorismo e arcaísmo dos cartolas. Falaremos melhor sobre isso ao final do texto.
Então, de principal figura pública por uma transformação do futebol brasileiro que passaria, necessariamente, pela extirpação dos cartolas (sejam lá quantos e quem fossem), Juca Kfouri se permitiu ser o carregador do bastão da cruzada do “futebol-empresa” no Brasil. Uma medida, por sinal, apresentada pelo Ministério dos Esportes, provando que se tratava de um plano de governo.
Pelas tantas razões que permeiam a política brasileira, o projeto não foi para a frente em sua totalidade. Com diversos remendos, a Bancada da Bola conseguiu impedir que a lei se tornasse obrigatória, tornando-a facultativa. Ruim para Juca? Nem tanto. Sua posição continuaria a mesma de jogar pedra. Coisa que faz até hoje.
As duas primeiras e talvez únicas relevantes experiências de futebol-empresa no Brasil aconteceram no mesmo estado. O Esporte Clube Bahia se associou ao Banco Opportunity, do famigerado Daniel Dantas, vendendo suas ações; enquanto o arquirrival Esporte Clube Vitória, pouco depois, vendeu 51% das suas ações ao Exxel Group, um grupo de investimentos de origem argentina, de propriedade de Juan Navarro, que investiu mais de US$ 2 bilhões em 73 empresas à época.
O balanço dessas aventuras eu posso resumir em uma frase: Bahia e Vitória sofreram, juntos e abraçados, um rebaixamento inédito para a Série C, ainda em 2005.
Um dia desses: analisando o fracasso dos anos 2000
Em 2010 um documentário de nome Desatando Nós foi lançado. A proposta era fazer um balanço de tudo o que levou à decadência o futebol baiano, tocando na ferida das desastradas aventuras do futebol-empresa que a dupla baiana entrou de cabeça. (Comento sobre o documentário aqui):
Um dos entrevistados, evidentemente, era Juca Kfouri. Aproveitaremos os depoimentos dados para o documentários para comentá-los após as transcrições. Tratava-se de uma chance perfeita para uma autocrítica. Longe disso.
“Acho que é meio incompatível você dar o passo da modernização mantendo o status quo do coronelismo. Não vai ser o Paulo Maracajá e sua turma, não vai ser a turma do ACM ou a turma que dominava o Vitória a anos que vai fazer uma parceria com bancos privados e dar o passo. Porque há uma incompatibilidade”
Bom, a não ser que algo ocorresse de forma violenta ou ilegal, os clubes brasileiros deveriam aprovar essas mudanças através de seus conselhos deliberativos. Foi o que aconteceu, e evidentemente isso fez crescer os mesmos interesses privados que já animavam alguns cartolas. Ignorar a inevitabilidade desses movimentos só poderia ser uma opção inocente.
O que Juca Kfouri sugere com essa fala é que abnegados dirigentes dos centenários clubes de massa do Brasil iriam simplesmente sair das suas poltronas e deixar a mesa à disposição de investidores privados vindo de qualquer canto do mundo, menos da história do clube. Não faz nem sentido alongar demais nessa questão. Sigamos.
“O capitalismo ainda não chegou aos clubes. Nós ainda estamos num momento pré-capitalista. Talvez estejamos num momento de socialização da miséria no futebol do Brasil. Exceção feita, evidentemente aos cartolas, esse é o aspecto mais angustiante de tudo.”
Em termos concretos o futebol é capitalista em sua essência, e uma indústria cultural há muitas décadas. Caso o uso raso do termo “capitalismo” ainda seja o do velho Juca comunista, hoje arrependido, que via a realidade divida em dois blocos, a verdade é que estavamos de fato defasados diante das ligas estrangeiras. Também pudera, estávamos no Brasil em crise, e essas indústrias do futebol européias começavam a se movimentar para crescer com base na sua capacidade interna de consumo (e agora os mercados globais) – permitindo cada vez mais atletas estrangeiros, abrindo seu capital sem restrições a qualquer mega-investidor estrangeiro, etc etc.
Coisa que não temos nada comparável, mesmo 20 anos depois da brilhante ideia de instaurar o futebol-empresa no Brasil. Parte da explicação dada para a tragédia vivida pelo Vitória foi a mudança dos rumos dos investimentos do gigantesco grupo Exxel, quando uma grave crise financeira afetou seus investimentos. O Esporte Clube Vitória que se lascasse, era o menos importante dos assuntos.
“É essa história. Primeiro, em que negócio Daniel Dantas entrou sem exercer um papel predador? Qual é a preocupação dele? Ele tinha alguma preocupação de fato de fazer o Bahia florescer? Não. Não tinha, evidentemente, a pretensão de fazer mais dinheiro com o Bahia”.
Quem teria interesse de botar dinheiro num clube de futebol senão para explorar ao máximo o seu valor de uso, o trabalho vivo da sua torcida, o seu capital social, o seu capital simbólico e transformar isso tudo em mercadoria? Fosse Daniel Dantas, Eike Batista, George Soros ou Donald Trump, a proposta seria absolutamente a mesma.
Apenas dois tipos de sujeitos, na história do futebol, tiraram do bolso parte considerável do dinheiro que possuíam para ver o seu clube de coração crescer: 1) os “abnegados” das famílias fundadoras desses clubes nos tempos do amadorismo; 2) o torcedor da arquibancada. O resto quer lucro. Juca deveria saber disso.
“Era necessário que quem administra o futebol do Brasil se preocupasse com um mínimo de equilíbrio. Não há essa preocupação aqui. Nem por isso os clubes do Nordeste, as federações do Nordeste, deixam de votar no Rei, no Soberano, no Imperador, Ricardo Primeiro e Único”.
Esse trecho aqui fala pouco, apesar de ilustrar perfeitamente como Juca Kfouri se mostra incapaz de entender que o mundo não funciona em duas notas. Não é preciso defender os cartolas e o sistema arcaico e viciado das federações para entender os problemas do futebol-empresa. Não é preciso negar que o fracasso das experiências baianas foram causados por situações típicas da desregulamentação financeira característica do período, para apontar outras possíveis soluções para o problemas do futebol nacional.
Hoje: viajando no futuro para trás
A cruzada kfouriana pelo futebol-empresa poderia ter morrido ali. O projeto não foi adiante por conta da resistência dos cartolas, mas onde ele foi aceito, assimilado e aplicado, mostrou a sua face mais cruel e perigosa. O poder corporativo conseguiu se mostrar mais danoso, autoritário e intransigente aos nossos clubes do que os próprios cartolas.
De lá para cá o jornalista manteve uma postura um pouco mais tímida com relação a esses temas. Mas desde 2016 parece estar empenhado em retomar a discussão do futebol-empresa, principalmente por conta de alguns fatos novos que começam a surgir. Obviamente, sempre se colocando enquanto Anti-Cartola.
Em junho, Kfouri deu espaço no seu blog para um conselheiro do São Paulo Futebol Clube, que compõe uma comissão que visa “empresarizar” o departamento de futebol do tradicional clube paulista.
O mesmo autor também contou com o blog, dois anos antes, para divulgar o projeto de lei do deputado Otávio Leite (PSDB-RJ), que visava instituir a “Sociedade Anônima do Futebol”, no bojo das discussões sobre a aprovação do Profut (plano de refinanciamento de dívidas dos clubes com a União).
Esse projeto, que pretendo tratar na próxima oportunidade na coluna, está sendo trazido à tona como uma proposta atualizada das leis dos anos 1990, agora mais amadurecida e encaixada na realidade do futebol brasileiro. Antecipo que não.
Em agosto, Kfouri usou a sua coluna para atacar frontalmente um grupo político do Corinthians – realmente desprovido de muita moralidade – para novamente defender a empresarização dos clubes como solução. Abre aspas: “Enquanto os clubes brasileiros não se transformarem em sociedades anônimas veremos esse tipo de gente tentar chegar ao poder”.
São repetidas situações em que a postura de jornalista anti-cartola se sobrepõe à própria leitura dos fatos. Condenar um grupo que disputa uma eleição do clube questionando a validade de um sistema de eleição numa instituição do porte do Corinthians, ao mesmo tempo que promove a sua empresarização, é uma falta total de sintonia com o momento em que atravessamos.
Juca, olhe o mundo ao seu redor
Evidências devidamente precisas para afirmar que Juca Kfouri não alterou basicamente nada do que promoveu ao longo dos anos 1990, quando cedeu a sua figura pública para apoiar a Lei Zico e posteriormente a Lei Pelé, dois projetos que visavam transformar os clubes brasileiros em empresas. Para Juca, essa era a única forma de minar o poder dos cartolas.
Tem muita coisa pior que “cartola”, vestindo a fantasia da moda e dizendo que representa a modernização do futebol brasileiro.
Ainda esse ano aconteceu o terceiro encontro do grupo Arquibancada Geral, Ampla e Irrestrita (Agir). O tema central era “Direito de Torcer”, e dentre diversos temas, tocava na importância da participação do torcedor nos rumos políticos do clube. Esse é um debate que avança, extremamente atual, na transformação de diversos clubes do país.
O tema do momento é democratização dos clubes, isto é, de dar ao seus sócio-torcedores o direito de escolher, ser escolhido, destituir ou colocar novos dirigentes, compor os conselhos deliberativos, compor os conselhos fiscais e de ética, aprovar ou reprovar orçamentos anuais e contas de gestões anteriores, tornar maus gestores inelegíveis.
Juca Kfouri, em que pese o seu verniz democrático, pró-torcedor e anti-corrupção, nunca cedeu uma única publicação do seu blog aos discursos desses movimentos que se proliferam em todo território nacional.
Difícil saber se a persistência do respeitável jornalista ainda reside na ilusão de que a empresarização do futebol brasileiro seria capaz de dirimir, numa suposta bolha da economia do futebol, os inevitáveis imperativos macroeconômicos que fazem do Brasil um eterno “país em desenvolvimento”; ou se há algum tipo de pretensão de convencer os torcedores brasileiros de que o controle corporativo, o trato como cliente e a fria relação da mercadoria vão ser suficientes para nos fazer preferir o businessmen e seus investidores aos velhos cartolas e seus vassalos.
O futebol brasileiro se achava o melhor do mundo em 1970. Peguem o Jornal dos Sports da época e analisem o discurso de que a incompetência dos cartolas era responsável pela inexistência de um torneio realmente nacional, mesmo que os jogadores tricampeões mundiais todos atuassem no certame local.
Essa ilusão parece permanecer viva a cada vez que algum dito especialista pressupõe que há alguma condição de contornar a própria realidade e levar o Brasil ao topo da cadeia alimentar do futebol global. Pois bem, acordem, não existe. Não há cartilha perfeita, não há condições materiais e objetivas mínimas para que isso se concretize, e pior: não há confiança nessa conversa nem dos seus próprios promotores – seus interesses são meramente particulares e alheios à arquibancada.