A desinformada defesa explícita do apartheid futebolístico por um jornalista de São Paulo motivou a retomada do fundamental tema das disparidades das cotas televisivas.
Por Emanuel Leite Jr.
Ao contrário do que defende o jornalista Maurício Barros em seu blog no site da ESPN Brasil, o problema do futebol brasileiro, ou melhor, o enorme desnível técnico entre os clubes da Série A do Campeonato Brasileira não se deve ao fato de que “não há 20 clubes no Brasil que mereçam estar na primeira divisão” ou “20 clubes de elite”, como refere o jornalista. O problema se encontra precisamente naquilo que Maurício Barros pretende preservar. Ou seja, o que prejudica o desenvolvimento sadio dos clubes brasileiros é exatamente sua elite, que, como classe dominante, impõe uma estrutura oligárquica, predadora e atrasada, criando o apartheid futebolístico (Leite Junior, 2015, p. 60), de consequências lesivas para todo o futebol nacional.
Ao tentar, profeticamente, decretar “o fim da história”, Francis Fukuyama argumentou que não haveria progresso sem desigualdade. Para ele, a desigualdade é funcional ao mercado capitalista e também justa, pois a história progrediria através da luta pela supremacia. Fukuyama, entretanto, esqueceu-se de uma premissa importante. Para que se trave a luta pela superioridade, é preciso que os polos que se opõem partam de condições mínimas de igualdade. Afinal, “antes de chegar a ponto de lutar pela dominação, todo grupo social deve conquistar um certo nível de paridade com os grupos rivais” (Norberto Bobbio). O texto de Maurício Barros, portanto, faz eco à lógica elitista de Fukuyama, defendendo a desigualdade e se olvidando do alerta do grande jurisfilósofo italiano para a necessidade de condições de paridade para que seja possível haver a disputa pela dominação.
Em “The globalization of football: a study in the glocalization of the ‘serious life’” (2004), Richard Giulianotti e Roland Robertson sustentam que “o esporte, em particular o futebol, constitui um dos domínios mais dinâmicos e sociologicamente esclarecedores da globalização”. Para eles, o futebol, como o “jogo global”, nos ajuda a explorar teórica e empiricamente os processos multidimensionais e de longo-termo da globalização. Giulianotti, em seu livro “Sociologia do futebol” (2010), diz que “o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e os meios de comunicação de massa, que forma e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro”, sendo, portanto, reflexo do contexto social, político e econômico no qual se encontra inserido.
Ao estudar espaços sociais diferentes, Pierre Bourdieu percebeu que existem similaridades estruturais e funcionais entre estes espaços e que é possível analisar um campo com base nos conhecimentos obtidos na análise de outro. O sociólogo expõe que em um campo se encontram relações de poder, o que implica dizer que há desigualdade e que dentro de cada campo existem lutas entre aqueles que pretendem garantir sua participação e a classe dominante que busca manter a ordem e a sua supremacia (Bourdieu, 2003).
Naquilo que se pode denominar de campo desportivo — espaço dotado de lógica própria, de uma história própria, onde se encontram os “produtos desportivos”, ou seja, no universo das práticas e dos consumos desportivos (Bourdieu, 2003, p. 183), mais especificamente na questão que pretendemos levantar no presente texto, também se verificam estas lutas. De um lado estão os clubes que pretendem garantir a sua participação e, no lado oposto, aqueles clubes que pertencem a uma classe dominante e que procuram de todo o modo manter o seu poder desportivo (através da obtenção de maiores recursos financeiros). Essa batalha se evidencia, por exemplo, na questão dos direitos de transmissão televisiva do Campeonato Brasileiro, as popularmente chamadas “cotas de TV”.
O futebol “pós-moderno”, caracterizado pelo crescimento financeiro pós-Copa do Mundo 1990 (Giulianotti, 2010, p. 137), impulsionado em grande parte pela revolução dos direitos de transmissão televisiva, aprofundou o fosso que separa o centro da periferia em todas as escalas — global, continental e nacional. Isso porque a “distribuição desigual dos pagamentos feitos pela televisão entre os clubes resulta em uma concentração ainda maior de riqueza financeira e do sucesso no futebol” (Giulianotti, 2010, p. 127). No mesmo sentido argumentam Christine Oughton e Jonathan Michie, em “Competitive Balance in Football: Trends and Effects” (2004), ao afirmarem que a ausência de regulação na distribuição dos recursos econômicos gera a tendência para que os clubes bem-sucedidos se tornem cada vez mais ricos, fazendo com que os menos bem-sucedidos fiquem, proporcionalmente, mais pobres.
Atualmente, existem dois modelos de negociação dos direitos de transmissão televisiva de um campeonato de futebol: individual e coletivo. As ligas que adotam a venda coletiva procuram estabelecer critérios de divisão que garantam o mínimo de equidade na partilha das receitas, ao passo que as negociações individuais, por natureza, não são capazes de assegurar distribuição igualitária, sujeitas que são às arbitrariedades do livre mercado. Esta é, inclusive, a opinião da Comissão Europeia, que argumenta que as negociações coletivas tornam a “competição mais atrativa, uma vez que as equipes competem em um contexto de maior igualdade de oportunidades” e proporcionam “uma maior estabilidade financeira para as equipes de futebol, devido a uma melhor redistribuição dos dividendos da televisão”.
O modelo de negociação adotado pelos clubes brasileiros (negociação individual), tem como consequência o aumento da desigualdade, uma vez que proporciona a concentração da riqueza financeira. Gerando o fenômeno do “apartheid futebolístico”, reprodução no futebol do “apartheid social, o fosso intransponível que separa incluídos dos excluídos” (Leite Junior, 2015, p. 61), refletindo, inclusive as assimetrias regionais do Brasil.
O fosso se aprofundou no Brasil após o rompimento do Clube dos Treze, que até 2011 era o responsável pelas negociações (embora adotasse modelo de divisão injusto, priorizando seus membros, gerando desigualdade entre ‘incluídos’ e ‘excluídos’). Se em 2011 a diferença entre Flamengo e Corinthians era de 4,2:1 em relação aos clubes que menos recebiam, nos contratos de 2012 a 2015 passou a ser de 6,1:1 (R$ 110 milhões x R$ 18 milhões), ao passo que no Brasileirão 2018 foi de 7,3:1 (R$ 170 milhões contra os cerca de R$ 23 milhões que recebem América-MG, Ceará e Paraná).
Assim, o que se verifica no futebol brasileiro é que a elite, como classe dominante, beneficiada pela concentração de poder, não demonstra intenção de garantir a efetiva participação da classe dominada. Como há de se falar em competição justa pela superioridade (que no futebol seria o título de campeão), se os clubes participantes da competição partem em condições de uma brutal desigualdade de condições? É o conflito entre incluídos vs. excluídos — o “apartheid futebolístico”. E é por isso que o que resta aos excluídos é a luta pela permanência na primeira divisão do futebol nacional como se fosse a conquista de um título.
Constata-se, ainda, que o “futebol pós-moderno” replica o conceito de centro-periferia sob o prisma das relações econômicas, como desenvolvido por Raúl Prebisch. O argentino argumenta que o centro do poder global relegou à periferia do sistema econômico a mera condição de fornecedor de alimentos e matérias-primas, não havendo espaço para que os países novos desenvolvessem suas indústrias.
Em analogia à realidade do futebol brasileiro, é possível dizer que a concentração do poder econômico no futebol nacional se encontra no centro do poder financeiro do país — eixo Rio-São Paulo majoritariamente, mas também alargado às regiões Sul/Sudeste.
A concentração do poder econômico do futebol brasileiro faz com que as regiões periféricas sigam sendo fornecedoras de matérias-primas para os clubes das regiões do centro e, em muitos locais, seu povo não tem outra alternativa a não ser consumidor do produto final — os campeonatos estaduais de Rio de Janeiro e São Paulo (massificadas pela alta exposição midiática), além do ciclo ininterrupto da popularização dos grandes clubes daqueles estados, nas regiões periféricas.
As “negociações individuais, ao concentrarem ainda mais o poder nas mãos de apenas dois clubes — Flamengo e Corinthians -, além de aprofundarem o ‘apartheid futebolístico’, aumentam o fosso da desigualdade social e regional, grande problema que assola o Brasil, ferindo (…) um princípio fundamental do Estado brasileiro: reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF/88)” (Leite Júnior, 2015, p. 77 e 78).
Não é por acaso, portanto, que no Brasil o que resta aos clubes “excluídos” é a luta pela permanência na primeira divisão do futebol nacional como se fosse a conquista de um título. E a solução do problema, ao contrário do que defendeu Maurício Barros em seu texto, não nos parece ser a redução do número de clubes na Série A, pois, como é óbvio, a desigualdade estrutural entre clubes de elite (“incluídos”) e clubes excluídos não vai desaparecer num passe de mágica se se reduzir de 20 para 18 o número de clubes na primeira divisão nacional.
O problema da desigualdade no futebol brasileiro só vai começar a ser atacado quando a negociação dos direitos de transmissão passar a ser coletiva e a divisão dos seus recursos for feita de forma equânime, respeitando, assim, um das pedras basilares do Estado Democrático de Direito, como preconiza José Afonso da Silva muito mais que um mero princípio, mas um dos “valores democráticos”, já que é princípio fundamental à democracia (Silva, 2005, p. 131), que é a Isonomia (o consagrado Princípio da Igualdade).
O que propomos?
Na Espanha, após o Real Decreto-Ley 5/2015, que implementou a negociação coletiva por lá, o faturamento total aumentou cerca de 335 milhões de Euros e a diferença caiu de 5:1 para cerca de 3,7:1. Os números mostram que a negociação centralizada beneficiou o coletivo, aumentando o faturamento global da liga espanhola e distribuindo de forma menos desigual os recursos. Walter Graziano, ao comentar a teoria dos jogos de John Nash, corrobora a teoria da justiça como equidade, de John Rawls, ao demonstrar que a cooperação gera mais benefícios à coletividade do que o individualismo, quando na busca pelo seu bem-estar o indivíduo não perde de vista os dos demais membros da sociedade. Graziano argumenta que, em sua teoria, Nash comprova que o comportamento individualista pode levar a sociedade à “lei da selva” (Graziano, 2005).
Por isso, defendemos:
– A regulamentação da negociação coletiva e centralizada da venda dos direitos de transmissão televisiva e que a distribuição dos pagamentos: 50% divididos igualitariamente entre todos os clubes, 25% baseados na classificação final do Campeonato anterior (o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que recebe o último classificado) e 25% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão, como medida para combater a desigualdade da distribuição de tais recursos.
– Que seja destinado 5% do total arrecadado pela venda coletiva e centralizada dos direitos de transmissão a projetos sociais que promovam a prática do futebol, bem como a centros de formação para o futebol feminino.