O Flamengo “da gente” não é um CNPJ

O debate público, em tempo de redes sociais tão presentes, requer bastante cuidado. Ele é composto de várias vertentes, onde se formam blocos de discussão (principalmente discordância) que se confundem no panorama mais amplo. O caso do incêndio no Centro de Treinamento “Ninho do Urubu”, do Flamengo, segue essa lógica, em uma apressada necessidade de apontamentos de culpas, de responsabilidades, de reflexões sobre o futebol-negócio, e tantas outros recortes cabíveis para abordar a tragédia que vitimou 10 jovens postulantes a craques de futebol.

Não era esse um tema sobre o qual eu pretendia escrever. Para um dos convites recebidos, expliquei que tanto as causas do acidente quanto a imputação de responsabilidades mereciam um trato mais cuidadoso e apurado. E no calor da emoção era algo que não valeria a pena falar, senão para receber uma onda de ataques nas redes sociais.

Mas seguiu o tema. Dias depois da tragédia, ainda se fala sobre “O Flamengo”. Em uma desses blocos de discussão (principalmente discordância) que se formaram nas redes sociais, estava a indignação de muita gente com o fato do mote do luto e das homenagens serem #ForçaFlamengo. Para essas pessoas, “O Flamengo” era o culpado pela morte desses jovens, portanto não merecia homenagem, mas repúdio e achincalhamento.

Mesmo os flamenguistas se dividiam nesse assunto, e não era difícil compreender as razões da comparação com o crime ambiental e social ocorrido na barragem de Brumadinho, pertencente à Vale. São tragédias possivelmente evitáveis, ocasionadas por negligência, irresponsabilidade e ganância. Nesse bloco de discordâncias, as pessoas percebem os jovens como trabalhadores de uma organização de orçamento  superior ao de grande maioria dos municípios brasileiros, cuja ânsia pelo lucro e o desapreço pela vida de seus contratados estaria na origem do problema.

Um dos tweets que provocou a produção desse texto perguntava se as pessoas concordariam com enterros das vítimas de Brumadinho com a bandeira da multinacional Vale cobrindo os caixões. Para esse, a empresa estava para aqueles mortos no mesmo patamar que “O Flamengo” estaria para os jovens. O que não é de todo errado, mas definitivamente não encerra o assunto.

Os próprios familiares das vítimas do Ninho do Urubu fizeram questão de usar adereços, camisas e bandeiras do Flamengo, cantaram o hino, entoaram gritos de torcedores. Nenhum familiar de um vitimado pela Vale, nem mesmo dos funcionários (sob o eufemismo de “colaboradores”), jamais aceitaria tal equivalência.

Aí parece que estamos perdendo um debate importante, que interfere em muito do que falamos aqui Na Bancada.

Há alguma coisa aí que nos parece em falta nessa discussão e discordância. Algo denso e relevante ainda persiste em um futebol tão massificado, ofertado como produto de consumo espetacular; de uma relação tão alienada dos torcedores frente ao círculos diretivos do clube; de uma dinâmica de exploração de “pés-de-obra” descartáveis onde “você compra dez jogadores e, se um der certo, já paga os outros nove” (nas palavras de Ronaldo Nazário) ; de preços impeditivos e planos de associação insustentáveis para o cidadão comum; de normas que disciplinam as festas e violentam a cultura torcedora.

Criticar o potencial destrutivo do futebol-negócio na vida das pessoas não pode nos impedir de perceber os laços que se estabelecem ao redor da entidade que é o clube. São milhões de sentimentos coletivos que se formam na base do pertencimento a uma comunidade, do afeto a um estádio, que não depende necessariamente de instrumentos políticos e jurídicos sacramentados para ocorrer.

O Flamengo “da gente”, dessas pessoas comuns que choram desde sexta-feira, não é o edifício aristocrático e elitizado que beira a Lagoa, na altura da Gávea. Não é um CNPJ que movimenta 700 milhões por ano e remunera jogadores com valores surreais. Não é uma cúpula diretiva com interesses políticos e particulares. Não é uma peça de marketing.

O Flamengo “da gente”, dessas pessoas comuns, como os parentes dos dez jovens jogadores, é a amizade causada pelo futebol, é a farra no trem rumo ao Maracanã, é o delírio com o gol de Petkovic aos 43, é o lamento de duas finais perdidas em um mês, é a loucura quando o Setor Norte canta junto, é o olho lacrimejado do primeiro jogo da filha.

O Flamengo “da gente”, dessas pessoas que cantam o hino no último adeus aos jovens, é o de uma comunidade afundada em sentimentos de tristeza e dor, que viu alguns dos seus – ou um daqueles que ansiavam em ser alguns dos seus – morrerem de forma tão trágica.

Isso é algo que persiste no futebol e que nós, do lado de fora do Flamengo, não temos o menor direito de interferir. Porque a solidariedade entre aqueles que vestem a mesma cor é tão intensa como aqueles que partilham a mesma origem, cultuam o mesmo deus, celebram as mesmas datas, convivem no mesmo bairro.

Negar-lhes o direito de buscar forças no sentimento “Flamengo”, além de injusto, é deixar de perceber as dinâmicas e as razões da associação entre as pessoas e os grupos. O saudoso Eduardo Galeano foi quem melhor definiu essa persistência: “o clube de futebol é a única cédula de identidade na qual o torcedor acredita”. Sem o Flamengo, boa parte dessa gente não se enxerga no mundo.

Recorrer ao “Flamengo” como o símbolo de sua comunidade, o símbolo do qual emana a sua identidade, não é se fechar e se negar a reconhecer as responsabilidades reais e a gravidade do acontecimento, tampouco coadunar com um suposto consenso reinante dentro de um clube. É apenas a prática do sentimento mais primitivo que faz o futebol ser o que é até hoje, em que pese a sua espetacularização massificada, sua mercantilização excludente, e sua exploração nociva.

 

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