Afinal, por que você torce para o seu time? “Tá no sangue!”, vai dizer de peito estufado o filho ou neto de torcedor. “É o melhor!”, vai dizer o camarada que só gosta das vitórias. “Há elementos psicossociais que permitem compreender as manifestações passionais que permeiam o universo esportivo…”, começará o acadêmico. Enfim, pode-se apelar pra hereditariedade ou pra alguma besteira, mas a real é que não tem esquadrão vencedor nem nada que, objetiva e verdadeiramente, justifique tanta devoção, compromisso e fidelidade – e sacrifício… – com um time de futebol. Ou tem?
Aprendi que há um momento da vida em que todo torcedor vai buscar ou inventar um sentido que dê algum quê de razoabilidade a essa nossa histeria toda (que é, compreensivelmente, ridícula aos olhos ‘pagãos’). Alguns vão encontrar mais facilmente um discurso coerente, outros terão que dar nó em pingo d’água e provavelmente terminarão fantasiando alguma justificativa. E é do jogo.
Sou, digamos, um vascaíno “hereditário”, levado pela mão de meu pai às arquibancadas, desde criança pequena absolutamente alucinado pelo meu time. Mas foi só aos 12 ou 15 anos de idade que comecei a ter maior consciência da importância dos nossos feitos na História do futebol brasileiro (sim, “nossos” feitos). Aprendi e me orgulhei com a equipe de negros e operários que na década de 1920 peitou o elitismo dos rivais mais ricos, fincou bandeira contra o racismo, resistiu à perseguição e ergueu com esforço um monumento em forma de estádio no subúrbio da minha cidade, pra que esta história nunca fosse esquecida. Eu, garoto, já encontrei pronto o meu relato justificador e coerente para aquela minha paixão tão sem porquê. “Sou do clube que lutou contra o racismo!”, bradei no pátio da escola. E, com Jaguaré e Fausto, com o Expresso da Vitória, com Barbosa e Ademir, com Dinamite e tantos outros, fui coletando e replicando meu repertório de narrativas épicas, heroicas, únicas.
Vindos de dentro ou de fora dos gramados, estes relatos clubísticos são potentes. O tricolor das Laranjeiras certamente reivindica o pioneirismo de Oscar Cox. O botafoguense vai evocar o símbolo de Mané, os tantos craques cedidos à seleção. O flamenguista, como sabemos, se orgulha de ser “o mais querido”, da sua enorme torcida, da sua presença marcada nas classes populares em todos os cantos do país, da “festa na favela”. E do time de Leônidas, Domingos e Fausto, do de Zizinho, da Era Zico e da conquista do mundo… E assim as nossas fortes identidades são lapidadas, cimentadas em uma base mais concreta talvez. Acredito, no entanto, que estas narrativas raramente são definidoras e anteriores à paixão torcedora. No fim das contas, é a paixão que lhes dá razão de ser, não o contrário.
Uma tragédia deixa, é claro, marcas muito profundas. No futebol, muda identidades, fortalece e retorce narrativas. É fácil perceber que um torcedor da Chapecoense, por exemplo, naturalmente lembrará para sempre, com emoção, a história da queda do avião em Medellín. Estamos diante de um marco: o Flamengo jamais será o mesmo depois da trágica morte dos dez garotos no Ninho do Urubu.
Alguns sugerem que o clube sairá menor desse horror, manchado pelo sangue dos que não soube cuidar. A entidade era, afinal, responsável pela tutela dos meninos, é portanto naturalmente responsável pelas mortes no CT. Pode até ser, mas há uma confusão aí. Tem muita gente se apressando em apontar um culpado pra malhar, e escolhendo “O Flamengo” pra bater. Pessoas que estão questionando as homenagens à entidade, comparando-as a uma hipotética e absurda homenagem à mineradora Vale, responsável pela tragédia de Brumadinho, que resultou em centenas de mortos. Rapidamente, criou-se um ambiente Fla x Flu, típico desses nossos tempos de redes sociais, onde “O Flamengo”, nesse momento de dor, foi muito atacado.
É evidente que as prováveis negligências devem ser apuradas, e que haja ampla responsabilização nesse caso. E principalmente, que se aprenda e que haja prevenção, para que nunca mais aconteça. Isso não deveria, no entanto, abrir espaço para punitivismos movidos pelo ódio, hipocrisias ou clubismos infantis. A memória dos garotos do ninho não merece isso.
Muita gente ainda não entendeu que, como aqui mesmo Na Bancada escreveu Irlan Simões, “’O Flamengo’ não é um CNPJ”. É do Irlan também o acertado grifo na expressão “O Flamengo”. ‘O Flamengo’ é muito maior que isso, e sairá engrandecido dessa tragédia.
Porque, como li por aí, “o Flamengo é esses moleques que se foram”. É o sonho deles, a camisa que eles vestiam. É a sua torcida, que sofre. É a união de seus torcedores, a força do encontro deles pra dar apoio aos familiares. É toda uma rede de pertencimento, comunidade, identificação, que me emociona, como apaixonado por futebol. Eu estou com o Flamengo. Sou muito Flamengo nessa história. E me orgulho muito de ver o meu clube, seu maior rival, tendo a nobreza de abraça-lo num momento de muita dor. Qualquer outra coisa seria covardia e falta de humanidade.
Menos de uma semana depois, o Flamengo entra em campo, no Maracanã, num clássico contra o Fluminense pelo campeonato carioca. As homenagens e a emoção a serem vistas no gramado e nas arquibancadas farão destas palavras algo demasiado óbvio. O ser Flamengo está por ser reescrito. Ser Flamengo a partir de agora, será, para sempre, lembrar Arthur Vinicius, Áthila, Bernardo, Christian, Gedinho, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo Bolívia, Samuel Thomas e Vitinho.
Foto: Delmiro Junior