Nota introdutória
O texto que segue corresponde ao Capítulo 3 Indústria do Futebol do livro “Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno“, disponível para download no site do Ludopédio. O trecho introduz duas discussões que se aprofundam na Parte I e Parte II do livro, onde se estabelece um histórico do desenvolvimento da indústria do futebol a partir de marcos que ajudam a compreender os conceitos de estádios “modernos” e arenas multiuso, e também a proposição da transformação dos clubes de associações civis sem fins lucrativos para o modelo de sociedade anônima desportiva, em boa medida derivados da revolução provocada pela efetivação das transmissões televisivas do futebol.
O segundo aspecto é extremamente atual no futebol brasileiro, dado avanço de uma nova regulamentação das sociedades anônimas do futebol, que visa estimular a conversão dos clubes brasileiros para o modelo de empresa, de modo a agora possuir proprietários, não mais associados. Como tema comum no podcast SDT Na Bancada, esse capítulo ajuda a introduzir muitos dos nosso conteúdos.
Capítulo 3
Indústria do Futebol
A opção de estender o debate da profissionalização até a década de 1950 se dá por dois motivos: a lentidão da consolidação do futebol profissional pelo Brasil; e o processo de reconstrução da Europa pós-guerra, que, quando concluso, estabelece uma série de novos paradigmas para entender o desenvolvimento dos clubes, dos estádios, do jogador profissional e da formação de culturas torcedoras mais consolidadas. Como é possível perceber, a indústria do futebol de Espanha, Itália e Alemanha não havia se desenvolvido suficientemente nem para alcançar a dimensão inglesa, nem para se diferenciar de Argentina, Brasil e Uruguai.
No início da década de 1950, as populações do Rio de Janeiro (2,3 mi) e de São Paulo (2,1 mi) já eram superiores às das grandes cidades europeias onde o futebol ganhava corpo, como Turim (719 mil), Liverpool (750 mil), Munique (823 mil), Milão (1,2 mi), Barcelona (1,2 mi), Madri (1,5 mi), Roma (1,6 mi) e se aproximavam da população de Manchester (2,6 mi). Cidades estas muito impactadas por perdas populacionais consideráveis ocorridas na Segunda Guerra Mundial. Num plano intermediário, três outras cidades brasileiras se mostram como centros urbanos destacados para além do eixo RJ-SP, como Recife (524 mil), Salvador (417 mil) e Belo Horizonte (352 mil), cada uma com um processo diferente de crescimento.
Logicamente, os números frios do crescimento populacional não indicam pujança econômica, mas proporcionam o vislumbre de um meio urbano massificado, de dinâmicas sociais complexas e plurais e, em se tratando de futebol profissional e crescentemente custoso, indica a existência de público. As cidades brasileiras estavam no mesmo patamar das grandes capitais mundiais do futebol quando da demanda por estádios de futebol capacitados a receber públicos cada vez maiores, num tempo em que o futebol já estava massificado, com necessidade de buscar a renda para garantir bons jogadores, enquanto cobrava pouco pelo acesso aos jogos. Tanto assim que, em 1940, surge o estádio do Estádio Municipal do Pacaembu, com 70 mil lugares, representando um marco na tradição de construção de estádios pelo poder público.
Foi seguido pelo também municipal e carioca Maracanã no meio da rivalidade entre os estados, feito para a Copa do Mundo de 1950, um colosso de 150 mil lugares.[1] O estádio foi criado e construído para a realização da IV Copa do Mundo FIFA, aquela que voltava a ser realizada após doze anos de hiato, causados pela II Guerra Mundial. Pensado para servir de “modelo” para um Brasil que buscava notabilidade internacional, o estádio se firmou com o maior do mundo por muito tempo, sendo a “casa” do futebol brasileiro. Na realidade, as primeiras competições pretensamente nacionais, apesar de se resumirem a uma fase curta eliminatória, só começam a acontecer no ano de 1959.
Logo depois desses dois gigantes, viria a Fonte Nova em 1951, em Salvador, com capacidade para 50 mil espectadores; e por fim surgiria o particular Morumbi em 1960, de São Paulo, fechando os quatro mais relevantes estádios antes do fato que marca história do futebol brasileiro: a instauração do regime civil-militar de 1964. Impulsionados pela paixão elevada depois da conquista das Copas do Mundo de 1958 e 1962, é durante o governo ditatorial que o futebol brasileiro assume o seu período ápice de envolvimento num projeto político.
Para além da tão falada relação entre a seleção brasileira, um projeto de gigantismo do regime passava imediatamente pelo futebol, e foi a partir de 1965, com a criação do Mineirão, para mais de 100 mil pessoas, e o Beira-Rio em 1969, para 75 mil – projetados e construídos em esferas estaduais – que o regime atentou para o potencial do futebol para a sua propaganda. O sucesso do projeto “Ninguém Segura Este País”, com o título da Copa do Mundo de 1970, dá “carta branca” para a fomentação do futebol brasileiro pela ditadura.
Acontece a criação do primeiro torneio nacionalizado de longa duração, em 1971, e se inicia uma sequência de construção de grandes estádios por todo o Brasil. Manaus, Recife, Natal, Fortaleza, Goiânia, Belém e São Luís são capitais que ganham gigantescos estádios entre os anos de 1972 e 1978 – que marcam o ápice e o declínio da ditadura. Cidades menores do interior também foram agraciadas com estádios. Ao passo que o regime ditatorial buscava garantir sua hegemonia política, se utilizando do futebol enquanto instrumento de propaganda, eram nesses estádios que se davam também formas de expressão populares dinâmicas e resistentes.[2]
Em todo o mundo, um novo “parâmetro” também se impôs. O futebol só seria rentável na medida em que pudesse mobilizar grandes massas, numa fase histórica de grandes públicos. No ano de 1970, a média de público global era crescente na primeira divisão de países como a Inglaterra, aproximadamente 32 mil pagantes e, na Itália, mais de 30 mil. Esses públicos precederam temporadas que registraram uma queda brusca no público dos estádios, causada, possivelmente, pela chegada de um fator responsável por um marco histórico crucial no futebol: a televisão.
Mascarenhas, partindo de leituras calcadas na geografia, vai observar como a formação das grandes metrópoles impacta no futebol. Processos de nível macro socioeconômicos que, do ponto de vista de uma economia política do futebol, também explicaria o agigantamento dos clubes originários desses imensos conglomerados urbanos causados pelo afluxo humano sem precedentes, do interior para as grandes e industrializadas cidades.[3] É importante salientar esse aspecto porque ele tem conexões diretas com as dinâmicas que se apresentam durante os anos de 1970.
Cabe voltar um pouco no tempo para destacar mudanças importantes na Europa. Em 1960, a Inglaterra finalmente derruba a regra do teto salarial dos jogadores, permitindo agora a atração de atletas de clubes médios ou pequenos por meio da oferta de maiores salários. Em 1963, finalmente o futebol se profissionaliza de fato na Alemanha, país que ainda penava para reconstruir a sua economia após a derrota na II Guerra Mundial. Estamos falando, portanto, de dois movimentos que acontecem numa Europa que começava a mudar, consolidando um novo patamar econômico que faria transitar uma parcela considerável da sua classe operária para a condição de “classe média”. Nas palavras de Perry Anderson, “o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge sem precedentes – sua idade de ouro –, apresentando o crescimento mais rápido da história”.[4]
Esse novo setor social, capacitado a dispender suas economias em mercadorias que iam além das suas necessidades básicas, passaria a ser o “alvo” do futebol antes mesmo do advento do televisionamento. Charles Critcher,[5] cujo trabalho aqui utilizado acompanha essa transformação, mostrava como uma nova leva de dirigentes começava a atentar para essas mudanças e preconizava que era necessário mudar muito daquilo do que se entendia por futebol. Era um momento aprofundar as noções de “espetáculo”, acompanhando os passos da indústria da música, por exemplo.
Os anos de 1960 se encerram sob essa celeuma. O jogo precisaria se transformar por inteiro e as velhas relações patronais deveriam ser mudadas por uma lógica mais racional e menos dispendiosa. Nessa altura, o televisionamento de jogos de futebol ainda começava a dar os seus primeiros passos na Europa, sob a estrutura das então redes estatais, se resumindo ao televisionamento de compactos de jogos que já haviam acontecido.[6]
Buscando estabelecer um histórico do televisionamento do futebol, Anderson Santos vai mostrar que tais iniciativas já datavam desde os anos de 1930 em alguns países da Europa. As dificuldades e limites tecnológicos, no entanto, ainda limitavam o poder de penetração do “futebol midiatizado”,[7] por assim dizer. Antes disso, muitas outras transformações foram tomando corpo.
Marcelo Proni[8] observará um evento que incrementará a mentalidade que apregoava um futebol menos dispendioso e capaz de auferir lucros. Em 1967, surge a National American Soccer League (NASL), que se tornaria a grande liga de futebol dos Estados Unidos. Inspirada no modelo já adotado para outros esportes com força local, e contando com um momento histórico com um imenso mercado consumidor ao seu favor, a liga investe de forma pesada em grandes estrelas do futebol mundial para tentar vingar.Por motivos de falta de base local, além da dificuldade de atrair público diante da concorrência pesada das outras indústrias esportivas locais, a NASL encerraria suas atividades de forma deficitária ainda em 1984, mas deixaria uma marca na história do futebol. Era a “primeira liga profissional a implementar uma concepção empresarial moderna de organização esportiva no soccer, e provavelmente inspirou a adoção do futebol-empresa na Europa”.[9]
A FIFA, ainda sob o comando do Sir Stanley Rous, desaprovava tal modelo. Assim como o profissionalismo demoraria a ser admitido por uma resistência de base moral, é possível entender boa parte da rejeição ou resistência à adoção de um modelo tão mercantilizado, mesmo que o futebol já movimentasse valores e interesses comerciais elevadíssimos. David Kennedy e Peter Kennedy, em acordo com o que já sinalizamos anteriormente, destacam que mesmo os grandes clubes não funcionavam como negócios lucrativos, mas um lugar de captação de “capital social – de concessão de um enorme status local e prestígio social”.[10] Para eles, inclusive, essa é uma das razões pela qual até hoje torcedores de todo o mundo rejeitam a ideia do futebol como um negócio, como veremos no Parte III.
A grande questão é que, como o próprio Critcher observa, o mundo vivia um processo de intensa “americanização” cultural, e toda a pujante indústria cultural que articulava elementos de entretenimento – música, cinema, parques temáticos, fast-foods, automóveis particulares, shopping centers, classe média suburbana – passa a engolir o futebol como um produto de potencial incalculável. E essa grande virada se dá na década de 1970.
Tempos de TV e de “vender o produto”
Um passo significativo foi a consolidação das modalidades de transmissão via satélite na Copa do Mundo de 1970 e, num segundo momento, a entrada de João Havelange na direção da FIFA em 1974, com um ambicioso projeto mercadológico para a instituição, por meio de uma parceria com a Adidas, e um acordo milionário e de longo prazo com a Coca-Cola, ao passo que buscava aproximar mais empresas parceiras.[11]
Paralelamente, no plano macroeconômico, o final da década de 1970 apresentava um momento de expansão geográfica sem precedentes de empresas transnacionais, com diversificação das áreas de investimento. Aproveitavam-se da abertura dos mercados nacionais, impulsionado pela sofisticação do sistema financeiro, num processo de grande interesse sobre o setor da comunicação, que, naquele período, passava a se sofisticar e ganhar contornos bem mais complexos e diversificados de comercialização.[12] O futebol, nesse sentido, é um dos principais produtos a ser explorado.
Vale dar atenção especial ao papel cumprido pelo brasileiro João Havelange para construir um grande império mercadológico em torno da FIFA e de seus parceiros comerciais, e sua tomada de posse sob a célebre frase: “Vim para vender o produto chamado futebol”. Ainda na sua campanha, Havelange articula federações africanas e asiáticas – além de outras com pouca tradição futebolística –, desprivilegiadas, com a promessa de investimentos diretos em formação de atletas e financiamento de novos estádios. Também prometeu ampliar o número de vagas da Copa do Mundo, garantindo a participação dessas federações que ainda desenvolviam o futebol localmente.
Todo esse projeto de poder demandava imenso aporte de recursos, e o seu encontro histórico com o desenvolvimento sem precedentes das tecnologias de transmissão de imagens via satélite vai conduzir paulatinamente o futebol a um processo de mercantilização inédito. Do que antes era uma atividade financiada por patronos desejosos de influência política, o futebol agora se tornaria uma grande indústria, um negócio de escala internacional. Ao gosto das indústrias culturais midiatizadas, seu pilar central seria o televisionamento e a venda de anúncios como ponta de lança.
Várias mudanças são detectadas diante disso. Em 1974, a Espanha finalmente derruba a “Normativa de los oriundos”, regulamentação que impedia a contratação de jogadores que não tivesse origem espanhola. Concomitantemente, a FIFA libera o uso de patrocínios estampados nas camisas dos clubes em 1977. A Itália, que abriu brevemente seu futebol a estrangeiros, tornou a fechá-lo em 1966, acaba reabrindo em 1980 por intensa pressão dos clubes. Essa “estrangeirização”, claro, ainda era resumida a poucos atletas. No Brasil, os patrocínios são utilizados em 1982.
O televisionamento do futebol, no caso brasileiro, vai aprofundar uma realidade já existente desde os tempos do rádio. A formação de “clubes nacionais”, principalmente aqueles localizados no Rio de Janeiro e em São Paulo – maiores metrópoles e sedes das principais redes de televisão nacionais –, vai alimentar, não sem a ação direta e planejada da imprensa esportiva, a atração de públicos “torcedores” para esses clubes, nos mais distintos recantos do país. Essas grandes potências se consolidarão como os produtos televisivos mais atrativos, como se replicou em todo o mundo, em que pese a realidade brasileira abranger até os dias atuais um número superior aos três ou quatro exemplos de outras ligas.[13]
Essa figura do “torcedor midiatizado” passa a ganhar cada vez mais relevância. Não apenas enquanto um consumidor de uma partida, mas enquanto prioridade da TV na abertura de novos mercados, sob um convencimento geral de que não havia mais distinções entre o torcedor de estádio e o torcedor-midiatizado. Enquanto um estádio comportaria 80 a 100 mil pessoas em um jogo de grande atratividade, a televisão começava a projetar audiências na casa das dezenas de milhões.
A lógica que rege essa preocupação das redes de TV em garantir a atratividade do público consumidor a um número cada vez menor de clubes segue outra lógica inerente à indústria de ondas. Propõe que, para garantir uma maior eficiência de comercialização, convém uma menor variedade de produtos, da mesma forma que possam ser consumidos por diferentes tipos de público, com vistas à “previsibilidade do consumo”. Caso esse público esteja disperso em um número cada vez maior de clubes, em especial àqueles em que o público opta por ser devoto por conta da sua localidade, há aí um ponto de fragilidade na comercialização dos jogos pela televisão.[14]
O que se observa nas principais ligas do mundo é a “seleção” de grandes clubes vencedores que seriam, a partir do argumento de atração de maior audiência, agraciados com maiores repasses. Em alguns casos, passamos a ver discrepâncias de valores na ordem de oito a dez vezes maiores que outros competidores do mesmo torneio. Agrava-se, portanto, a desigualdade econômica entre os clubes “grandes” e os ditos “médios”. Essa necessidade se cruza com outro aspecto: o clube deve deixar de ser um polo de associação de torcedores. Esses deverão ser consumidores cada vez mais passivos do produto do futebol de uma forma geral. É o tipo de fenômeno que trataremos de forma mais profunda mais adiante.
O futebol profissional midiatizado passa a configurar uma dimensão estrutural totalmente distinta do início do século. Isso quer dizer que passa a ser exigida do clube uma capacidade muito maior de gestão dos recursos e de suas atividades cotidianas, ampliando consideravelmente as condições básicas funcionamento. Esse aspecto acaba, por sua vez, exigindo a inserção de diversos tipos de profissionais que não apenas os jogadores, mas trabalhadores envolvidos na “produção do espetáculo”. Estamos falando da adoção de figuras cada vez mais profissionalizadas, como maqueiros, árbitros reservas, delegados das partidas e gandulas, pensados inclusive para garantir que a dinamicidade da partida não comprometesse o conteúdo midiático, que, aos poucos, ia se tornando a principal fonte de renda dos clubes.
Quando apontamos que apenas nessa altura podemos começar a tratar o futebol como uma “indústria”, salientamos que estamos por assim definir a existência de um conjunto de agentes econômicos de diferentes vertentes, mas de interesses semelhantes. Esse aspecto analítico é crucial para entender o funcionamento das indústrias culturais, mesmo em casos mais particulares. A “sociabilidade entre os capitais” se estabelece na medida em que esses interesses particulares passam a se articular e competir dentro de um mesmo circuito, conferindo diferentes momentos de mediação e contradições.[15]
Apesar da entrada cada vez maior dos recursos oriundos da TV anunciar estabilidade financeira para essa indústria, os efeitos colaterais começam a aparecer. Os custos altos, a estrutura arcaica e o paternalismo dos dirigentes acabam causando uma busca desenfreada para a montagem de times vencedores, sem relação direta com os recursos que entravam, em meio a uma inflação salarial nunca vista. Os clubes passam a acumular imensas dívidas com o Estado, que reage prontamente com uma grande movimentação política para transformá-los em empresas.
Parte considerável desse capítulo será retomada na Parte III, quando trataremos de questões referentes à ultramercantilização do futebol de forma mais localizada e contextualizada. Analisaremos, principalmente, os reflexos desse fenômeno naquilo que trataremos por “cultura torcedora”. De todo modo, é necessário seguir o apanhado histórico de forma cronológica, para que possamos compreender as diversas consequências dessa virada mercantilizadoras dos anos de 1970 e de 1980, em especial atentando à consolidação da hegemonia da doutrina neoliberal em escala internacional.
O período que acabamos de superar – da década de 1950 ao início de 1980 – é um marco que altera todos os mínimos aspectos do futebol. A partir daqui, trataremos de um momento histórico em que os quatro elementos que compõem o título desta Parte I já estão redimensionados por inteiro.
O clube é alçado à dimensão de uma instituição demasiadamente grande para ser tratada como uma associação civil sem fins lucrativos e começa a ser ameaçado de empresarização. O jogador começa a avançar gradativamente nos termos dos seus “direitos trabalhistas”, atingindo rendimentos cada vez maiores e atraindo, de forma direta, o interesse de agentes econômicos que se responsabilizariam por suas milionárias carreiras. Os estádios, agora não mais tão relevantes para o orçamento de clubes, uma vez que o peso dos valores repassados em cotas televisivas era dezenas de vezes maior daquele arrecadado em ingressos, começavam a ser tratados como um ambiente inóspito e violento. E, por fim, a torcida começava a ser entendida cada vez mais como público consumidor, sendo alvo de planos cada vez mais agressivos de ressignificação, principalmente aquele que chamamos de “público dos estádios”.
O que é importante frisar é que esse novo imperativo mercadológico conduzirá totalmente o que deve e o que não deve ser feito em termos de gestão dessa grande indústria; e, ao mesmo tempo, incitará a formação de novos atores econômicos, cada vez mais presentes em todas as esferas do futebol. Com o passar do tempo, os critérios de “mérito esportivo” vão sendo trocados pelas demandas de uma indústria cada vez mais sedenta e voraz, que passa a remodelar torneios, formar novas ligas e alterar regras, com vistas à potencialização da sua lucratividade.
Cada vez mais alinhada à também cada vez mais mundializada e desregulamentada economia do período, o futebol vai se ajustando aos ditames macroeconômicos e geopolíticos mais concretos. Grandes economias formam grandes ligas e começam a concentrar os grandes craques da bola. Países como Brasil e Argentina, que ainda conseguiam manter certo nível de competitividade contra a Europa, são deixados para trás na cadeia alimentar do futebol-negócio. De grandes escolas, passam a se tornar, gradativamente, fornecedores dos melhores “pés-de-obra” do planeta.
A nova realidade de inserção do futebol numa cadeia produtiva de bens culturais de dimensões crescentes dá sustentação a um novo entendimento mercadológico, que buscava superar as limitações das formas de controle paternalista dos clubes por dirigentes “amadores”, tidas como arcaicas. Em alguns casos, indícios de lavagem de dinheiro teriam sido detectados, ampliando a preocupação do poder público com a situação do futebol. O “novo momento” exigia, ao menos em tese, profissionalização e garantia de ética empresarial. David Kennedy e Peter Kennedy enxergam que “a concentração de capital e a habilidade para se libertar da tradicional cultura de governança coletiva do jogo, na sua terra de origem mais especialmente, porém globalmente crescente, agora apoia a natureza de ‘livre mercado’ do futebol”.[16]
Esse período histórico deve ser compreendido em um duplo movimento de liberalização dos mercados e a ideologia neoliberal do “Estado mínimo”, por um lado, e um amplo processo de internacionalização (ou mundialização) do capital financeiro, com uma superação sem precedentes das barreiras econômicas então delimitadas pelas fronteiras dos Estados-nação. Nas palavras de François Chesnais,[17] a “mundialização” é o resultado de dois movimentos distintos interligados, que seriam a inédita fase de acumulação ininterrupta do capital desde 1914, e as “políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980”.[18]
Nesse último quesito, que resume perfeitamente os fundamentos da doutrina neoliberal, é crucial destacar o nome de Ronald Reagan, nos Estados Unidos; e a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher. Essa última será protagonista de um marco histórico fundamental para este trabalho, que trataremos logo adiante, e de forma mais aprofundada no Parte II.
O que cabe aqui é salientar que o crescimento de um “movimento” neoliberal a nível internacional não se trata de um breve apogeu. Trata-se de uma das forças políticas e ideológicas mais sólidas do pós-guerra, que mudaria de vez tudo o que se entendia por “sociedades ocidentais”, principalmente aquelas do dito capitalismo avançado. Perry Anderson, um dos mais renomados observadores desse período, estabelece o ano de 1973 como um marco, quando uma crise dessa então “era de ouro” do capitalismo sob os preceitos da socialdemocracia (serviços públicos, assistência estatal, direitos trabalhistas e empoderamento do capital produtivo) chega a níveis preocupantes, com grande recessão e baixas taxas de crescimento.[19]
O que ele observa é que o neoliberalismo se vale exatamente do ataque a esses preceitos que norteavam a ideia de um Estado bem-estar social. A proposta era condenar essa estrutura como “parasitária” e causadora da crise, propondo uma nova abordagem daquilo que se entendia por “Estado”. Agora as mudanças viriam em dois flancos: primeiro, na retirada de toda a participação na assistência aos trabalhadores e na garantia de direitos fundamentais como saúde, educação e renda mínima (importantes para a reprodução do próprio capitalismo com modo de vida); segundo, no uso da força política, jurídica e física do Estado para desmantelar organizações civis, como sindicatos, associações de trabalhadores e movimentos sociais, tratados como “inimigos internos da nação”.
Como veremos adiante, o futebol não estará fora do furacão neoliberal dos anos de 1980. Muito ao gosto dos tempos de governos fascistas e autoritários das primeiras décadas do século XX, era a vez agora da doutrina neoliberal também se utilizar do jogo como elemento de propaganda e publicidade. O futebol como negócio, o clube e o estádio como empresas e o torcedor como consumidor.
Empresarização dos clubes
A nova proposta do mundo cada vez mais regido pelos ditames do “mercado” era gerir o clube enquanto uma empresa, não apenas para otimizar e racionalizar as suas ações, mas também para gerar lucros, dentro de uma nova lógica mundializante da indústria cultural. Por conta disso que a aplicação de algumas leis – ainda que baseadas no argumento da contenção das dívidas – devem ser vistas como intervenções diretas pela empresarização e privatização dos clubes.
O primeiro passo nesse sentido acontece na Itália. A lei do Societá per Azioni (SpA), lançada em 1981, obrigou todos os clubes das duas divisões superiores a se transformarem em sociedades acionárias. Na sequência, em 1984, a França, até então secundária no futebol mundial, lança a lei do Société Anonyme à Objet Sportif (SAOS) nos mesmos moldes. Em 1990, é a vez da Espanha lançar a lei das Sociedades Anónimas Deportivas (SAD), poupando apenas quatro clubes, dentre eles o Real Madrid e o Barcelona. Apesar das suas particularidades, em todos esses casos ocorrerão reformas nas leis para aprofundar essas medidas, autorizando os clubes a entrar no mercado de ações.
A Alemanha se constitui como uma exceção. Em 1998, a proposta de empresarização dos clubes sofre resistência e a solução encontrada pelo então governo socialdemocrata foi de estabelecer um limite para a venda. Surge a lei 50+1%, que obriga os clubes a manter a maior parte das suas ações na mão dos seus membros-torcedores, vendendo para investidores profissionais apenas o que lhe interessasse e lhe fosse necessário, sem perder o controle da instituição.[20]
Esses movimentos europeus são de importância central para entender o contexto dos anos de 1990. O “parâmetro” lançado sobre como o esporte deveria ser administrado se encontrava com um momento em que o futebol e a economia brasileira passavam por uma crise sem precedentes. Marcelo Proni relaciona essa crise financeira e uma dita “decadência” do futebol brasileiro, situação que vai desembocar numa adoção cada vez maior da ideia de empresarização. “Não era incomum aparecer propostas de modernização para o futebol brasileiro, que tinham como referência o novo modelo de organização que venha sendo desenvolvido na Europa: o ‘futebol empresa’”.[21]
Ao longo da década de 1990, em especial quando analisados os governos Collor e FHC (1990 a 2001), o mundo do futebol é cercado de promotores e agentes econômicos interessados no processo de empresarização dos clubes brasileiros. Não por acaso, tratavam-se de dois governos totalmente mergulhadores nos preceitos da doutrina neoliberal tão dominante no período. Foi em 1990/91, portanto, já depois do início do televisionamento dos torneios nacionais, que surge a Lei Zico, cujos objetivos eram de regulamentar a comercialização do futebol profissional e a entrada das empresas, alterar as leis dos contratos com os jogadores e descentralizar o poder de decisão da CBF.[22]
A parte mais relevante do projeto, no entanto, estava na exigência da transformação obrigatória dos clubes em empresas. Foram dadas três alternativas: 1) transformação em sociedade comercial de natureza esportiva; 2) constituição de sociedade comercial de natureza desportiva independente, com controle da maioria do capital com direito a voto; ou 3) contratação de sociedade comercial para gestão de atividades profissionais. Quando o projeto foi finalmente votado e aprovado, seu texto alterava a obrigação pela permissão de empresarização.
Ao que constam as análises do período, a mudança se deu principalmente por conta da intervenção da “Bancada da Bola”, o lobby dos cartolas brasileiros.[23] O projeto voltaria a ser “reeditado” alguns anos depois, no bojo do surgimento da Lei Pelé, em 1997/1998. Essa nova iniciativa tinha como foco principal atualizar as normas trabalhistas para os jogadores brasileiros (como a extinção do “passe”), mas acabou por ser incorporada em uma nova ofensiva de empresarização e privatização dos clubes, destaque-se: por iniciativa do Ministério dos Esportes.
Aprovada em 1998, a Lei Pelé obrigou os clubes a se transformarem em empresas num prazo de dois anos, caso contrario não participariam de competições profissionais. Marcelo Proni,[24] cuja pesquisa se desenrolou exatamente durante a discussão dessa lei, se posiciona favoravelmente às medidas como um processo necessário de “modernização e profissionalização” do principal esporte do mundo. Não há muitos materiais que indiquem uma reavaliação do seu posicionamento (ou mesmo manutenção de caracterização positiva sobre o tema),[25] mas vamos seguir num caminho inverso, analisando alguns casos nacionais.
Um dos poucos casos de clubes tradicionais que chegou a ser controlado por uma empresa foi o Esporte Clube Vitória. Ainda no ano de 2000, cerca de seis meses após a conquista do 4º lugar no campeonato brasileiro, e pouco mais de um ano após o centenário do clube, o então presidente, Paulo Carneiro, selou um contrato até então inédito no Brasil e vendeu 51% das ações do Vitória S.A – que cuidava apenas do departamento de futebol da entidade esportiva – para investidores argentinos do Fundo Exxel Group. O banco se tornaria, desse modo, o primeiro acionista a investir no futebol brasileiro. Seu rival, o Esporte Clube Bahia, faria um acordo em moldes semelhantes com o Banco Opportunity, ainda em 1998, quando foram compradas iguais 51% das ações.
As iniciativas baianas foram vistas como marcos no momento. Muito elogiadas e inspirando confiança nos promotores dessas mudanças, a dupla BAVI entrou de cabeça em “parcerias” que planejavam grandes ganhos nos anos que viriam. Fracassou na medida em que os investidores passaram a deixar de investir nos clubes, aos moldes dos grandes grupos financeiros, o que deixou o futebol baiano em situação muito delicada: os clubes foram rebaixados sucessivamente, disputando a Série C do Campeonato Brasileiro no ano de 2006.
Outras experiências aconteceram posteriormente e foram igualmente fracassadas. O Vasco da Gama formou uma joint venture com o NationsBank e se tornou o primeiro clube brasileiro a emitir títulos no mercado de capitais. Na Série B e C, em clubes de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, é possível observar casos de pequenos clubes-empresa, sem torcida em sua maioria. Falaremos mais sobre isso no próximo capítulo.
O que ficou é que a aplicação forçada do modelo europeu de clube-empresa foi um fracasso tão grande que praticamente não houve outro caso parecido entre os grandes e médios clubes do Brasil. Seja pela dificuldade em viabilizar essas “mudanças de mentalidade” (para usar o termo em voga na época); seja pela estrutura associativista dos clubes brasileiros, ainda muito ligados às famílias tradicionais que compunham seus conselhos; seja pelo esmorecimento da temática e, inclusive, recuo de muitos dos seus defensores, dentre eles jornalistas consagrados; ou – para nossos objetivos aqui o principal de tudo – uma tomada de postura mais ativa por parte dos torcedores. Essa questão estará presente na Parte III.
Vale a pena apreciar outro aspecto da ultramercantilização do futebol que não ocorre necessariamente nos clubes, mas também deriva do processo de transformação dos torcedores em consumidores passivos; que é a transformação dos estádios.
Empresarização dos estádios
Os “tempos neoliberais” não atingiram o futebol apenas no ataque aos clubes enquanto instituições coletivas. Precisamos retornar um pouco no tempo, mais precisamente ao final da década de 1980, para tratar de um momento histórico que mudou completamente o futebol mundial. No protagonismo dessas mudanças está exatamente a supracitada Margareth Thatcher, então nos últimos de seus doze anos no cargo de primeira-ministra britânica. Em mais de uma década de governo radicalmente neoliberal, Thatcher se viu impelida a dar respostas aos problemas que concerniam ao futebol na Inglaterra, um fenômeno de proporções gigantescas, encrustado naquele setor social no qual ela era odiada em sua grande maioria. Essa tal “cultura da classe trabalhadora” e suas manifestações efusivas dentro dos estádios estampavam os noticiários com cada vez maior frequência.
No ano de 1985, na partida final da Taça dos Campeões da Europa (hoje Liga dos Campeões, ou apenas Champions), que envolvia o inglês Liverpool e a italiana Juventus, grupos de hooligans se confrontaram com ultras italianos, causando uma grande confusão no estádio. O pisoteamento e esmagamento, além da queda de grades e muros, decorrentes do pânico causado pelas brigas, ocasionou a morte de 38 pessoas. Esse fato, que ficou conhecido como a “Tragédia de Heysel”, marcou o momento em que o debate sobre a violência entre os torcedores nos estádios era crescente em todo o mundo com o surgimento de diferentes subculturas torcedoras voltadas para a prática costumeira do confronto físico.
Hollanda observara que o acontecimento de Heysel já era uma “tragédia anunciada” diante do arrefecimento das tensões entre “hooligans e ultras”, que “vinha sendo incitada há alguns anos com ameaças mútuas”. O ano de 1984 já registrara confrontos ocorridos de deslocamentos de grupos de torcedores ingleses do mesmo Liverpool e também do londrino Tottenham, respectivamente na cidade de Roma e de Bruxelas, “fazendo a primeira-ministra Margareth Thatcher qualificar a onda de violência como ‘uma desgraça para a Inglaterra’”.[26]
Evitaremos tratar amiúde do tema da violência por acreditarmos ser esse um tema de extrema complexidade e de difícil definição e interpretação, que demandaria uma longa incursão teórica. Sugerimos ao leitor interessado nessa temática que se debruce sobre a extensa introdução à tese doutoral do já citado Bernardo Borges Buarque de Hollanda para compreender os caminhares da academia e da temática da violência entre torcedores de todo o mundo. Lá será possível captar os tantos vieses de pesquisa desenvolvidos num momento em que os estudos do futebol ainda começavam a tomar corpo na academia brasileira, e que o assunto era tratado de modo imediatista e sensacionalista, partindo de um “cariz racial e biológico assimilado pelos jornalistas”.[27]
Interessa-nos, aqui, no entanto, avaliar as consequências do fato, e como o tema da “violência” – real, porém, superestimado – foi utilizado para aprofundar o processo de ultramercantilização do futebol. Primeiro na Inglaterra, e depois no resto do mundo.
O caso Heysel levou a uma punição de cinco anos para os clubes ingleses em competições europeias, aplicada pela própria UEFA com o apoio público da Rainha Elizabeth II. O tema tomava, assim, proporções nacionais, uma vez que a punição não se resumiu ao clube ao qual pertencia a torcida violenta. Toda a “opinião pública”, imprensa esportiva e meio político começavam a proferir que a “decadência do futebol inglês” – ainda hoje um tema controverso – era decorrência direta da violência promovida pelas firmas hooligans.[28]
É quando, em abril de 1989, um novo acontecimento, ainda mais grave, gera um processo de inevitável (talvez oportuna) tomada de decisão pelo governo de Margareth Thatcher. Na semifinal da Taça da Inglaterra, um jogo entre o mesmo time do Liverpool contra o Nottingham Forest, no estádio do clube do Sheffield Wednesday, conhecido como Estádio Hillsborough, considerado um dos melhores do país e totalmente adequados às normas de segurança vigentes na época. Com a superlotação e grande deslocamento de ambas as torcidas para essa cidade do norte inglês, o movimento de entrada incontida de torcedores quando dado o apito inicial da partida ocasionou a morte por esmagamento e sufocamento de nada menos que 96 pessoas. Uma tragédia que prontamente causou uma movimentação geral nos círculos de poder ingleses, que decidiram que alguma atitude enérgica deveria ser tomada.
Como trataremos mais profundamente dos detalhes desse fato histórico, cabe aqui sinalizar que, além do hooliganismo – que, descobriu-se mais de vinte anos depois, não foi o verdadeiro culpado pela tragédia –, os tradicionais estádios ingleses também começariam a ser condenados e dados como inviáveis (mesmo que o Hillsborough tivesse sido reformado cerca de dez anos antes, estando em total acordo com as normas da época).
O acontecimento levou à produção do famoso “Relatório Taylor”, documento que investigou as causas do acidente, e estabeleceu diretrizes para um novo projeto de segurança. Mais que isso, tal relatório também traria novas normas de estruturação dos estádios e do próprio futebol inglês. Algo que era tido como um tabu no mundo do futebol até então passou a ser linha de frente dos trabalhos: condenar, coibir, proibir e perseguir todos os tipos de manifestações festivas dentro dos estádios.
A “nova ordem” dos estádios iria impor aos clubes ingleses uma reestruturação financeira de grandes proporções. Boa parte dos clubes precisou abrir seu capital para investidores de toda ordem, atrair recursos para a reforma obrigatória dos seus estádios, dando, assim, início ao ciclo mais agressivo da supracitada empresarização e privatização dos clubes ingleses.
Com o estrondoso sucesso financeiro da English Premier League (fundada em 1992 para marcar essa remodelação total do futebol local) e de seus clubes, o “modelo inglês” se impõe como novo parâmetro para todo o futebol mundial. Formar uma grande liga, moderna, profissional e rentável, passaria diretamente pela capacidade de adequação dos estádios para esse novo momento, oferecendo um padrão de conforto, de segurança, de serviços alimentícios variados e visando, principalmente, um público alheio àquele tradicional público torcedor dos clubes.
Os “eventos jogos de futebol” dos clubes de ponta da Europa vão se tornar grandes e lucrativos produtos, pensados para atrair turistas e visitantes diversos, com pacotes de alto custo, muitas vezes inviáveis para o tradicional torcedor local. É uma mudança completa de paradigma sobre o que seria “a torcida” enquanto público componente dos estádios. “O consumidor, solitário ou imerso em seu pequeno e ‘fechado’ grupo, contempla, aplaude, filma e fotografa o cenário. Uma experiência sem riscos, sem incertezas, adequada e altamente lucrativa para os donos do espetáculo”.[29]
Esse marco histórico que destacamos ainda requer um novo destaque: a adoção do modelo de “arenas multiuso” para o futebol se expande, numa assimilação direta dos preceitos do esporte-negócio norte-americano para o velho ludopédio britânico-mundial. A “arena multiuso” deve ser entendida, acima de qualquer leitura, como um “conceito”, uma vez que prevê uma instalação que extrapola os interesses esportivos, alegando “multifuncionalidade”, ao mesmo tempo que reduz a importância do esporte na manutenção financeira e utilitária daquele equipamento.
Como veremos na próxima Parte, esse “conceito” se expandirá em todo o mundo do futebol, mas só superará os limites financeiros previsíveis para a sua aplicação quando FIFA e UEFA passam a adotá-los como pré-requisitos básicos para suas principais competições. Ou seja: as próprias entidades máximas se encarregarão de pensar as suas competições como vetores da construção de novas arenas em todo o mundo, com claros interesses financeiros e políticos que envolvem toda uma cadeia de relações entre o capital financeiro, esportivo, empresas de consultoria e assessoria jurídica voltadas para o setor, grandes escritórios internacionais de arquitetura e gigantes empreiteiras. Até aqui nos cabe apontar que é nesse contexto que a Copa do Mundo é pensada para o Brasil, como um grande veículo de transformação e modernização, capaz de deixar um “legado” para o futebol nacional.
É curioso, e um tanto compreensível, observar como soa contraditório alegar aos espectadores menos atentos à história do futebol que estádios estão sendo remodelados para diminuir a sua capacidade desde os anos de 1990. Mascarenhas observa que essa tendência chega ao Brasil a partir de 1995, com uma série de reformas (e normativas) que reduzem a capacidade dos estádios, e, posteriormente, a partir da inauguração da Arena da Baixada em 1999, uma nova geração de equipamentos.[30] Foi pesquisando esse novo modelo, pertencente ao Clube Atlético Paranaense, que Antônio Cruz destaca a figura do seu então presidente, Mario Celso Petraglia, que viveu longos anos de enfrentamento com a Fanáticos, principal torcida organizada do clube. Os torcedores protestavam e criticavam a política aplicada no preço dos ingressos, quando o cartola se resumia a dizer: “O povão já não vai a lugar nenhum há muito tempo. Quem fez a exclusão social não foi o Atlético. Boa parte dos que reclamam são aqueles que depois de saírem do estádio vão beber e assaltar”.[31]
Vamos nos reservar a comentar apenas brevemente o tema da empresarização dos estádios em tempos neoliberais, porque reservamos toda a Parte II para tratar dessa temática. Acreditamos, no entanto, termos cumprido o papel de articular historicamente essas transformações da indústria do futebol a partir de leituras macroeconômicas, aliada a uma ligação entre as diferentes conjunturas nacionais (em especial no seu epicentro financeiro, a Europa) e dando atenção à investigação dos diferentes atores políticos e econômicos que se faziam presentes nesses momentos.
O tema da mercantilização do futebol e empresarização dos clubes e estádios ainda serão tratados nas próximas duas Partes. Gostaríamos de encerrar a Parte I, na qual fizemos o esforço de traçar o desenvolvimento do futebol ao longo de quase um século e meio, tratando de uma nova tendência dessa indústria. À parte de todo arcabouço teórico que tivemos nos capítulos anteriores, a parte que encerra este capítulo será de caráter mais expositivo e explicativo, porque se tratam de fenômenos recentes com pouco ou nenhum estudo, e, com isso, teremos o anseio de inspirar os leitores a acompanhar esses casos como potenciais objetos de pesquisa no campo dos estudos do futebol.
Notas
[1] MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014.
[2] Idem.p. 167.
[3] Idem, p. 179.
[4] ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo”. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (org.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23.
[5] CRITCHER, Chas. Football Since The War”. In: CLARKE, J.; CRITCHER, C.; JOHNSON, R. (org.). Working Class Culture: Studies in history and theory. Londres: Hutchinson, 1979.p.161-184.
[6] Idem.
[7] SANTOS, Anderson David Gomes dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de futebol. Curitiba: Appris, 2019.
[8] PRONI, M. W. Esporte-Espetáculo e Futebol-Empresa. 1998. 275 f. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998, p. 154.
[9] Idem, p. 155.
[10] KENNEDY, D. & KENNEDY, P. Football in Neo-Liberal Times: A Marxist Perspective on the European Football Industry, Routledge, 2016. p. 3.
[11] Ibidem.
[12] SANTOS. op. cit., 2019. p. 90.
[13] Idem.
[14] Anderson Santos, especialista na temática e parceiro de pesquisa e produção do autor dessa dissertação, acredita que nos tempos atuais há uma tendência de reversão dessa lógica por conta do interesse ao retorno a uma “regionalização” do conteúdo. Com a ampliação da oferta de canais digitais, assim como da viabilização de conteúdos ao vivo em plataforma online, o futebol pode sofrer algumas mudanças. Cf. SANTOS, A. D. G. dos. Las estrategias de mercado del Esporte Interativo: la regionalización y la presencia del capital extranjero. SEMINARIO REGIONAL (CONO SUR) ALAIC, 8., 2015. Córdoba. Anais… Córdoba: ALAIC, 2015.
[15] BOLAÑO, C.R.S.; BRITTOS, V.; GOLIM, C. Economia da arte e da cultura. São Paulo: Observatório Itaú Cultural, 2010.
[16] No original: “This concentration of capital and the ability to break free from the traditional collective culture of governance of the game in its European heartlands more especially, but increasingly, now underpins the free market nature of football”. Cf. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 18.
[17] CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
[18] Idem, p. 41.
[19] ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo”. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23.
[20]SUPPORTERS DIRECT. What is the feasibility of a Supporters Direct Europe? London, 2009.
[21] PRONI, op. cit., 1998. p. 205-208.
[22] Idem, p. 218.
[23] HELAL, R. Passes e Impasses: futebol e cultura de massas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1997.
[24] PRONI, op. cit., 1998.
[25] Curiosamente, nas considerações finais do seu trabalho, o autor faz algumas ponderações sobre os riscos que estariam em torno de um processo tão agressivo de mercantilização dos clubes e do futebol. Queixas que já se davam em larga escala na Europa, como veremos na Parte III.
[26] HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-1988). 2008. 771 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 27.
[27] Idem.p. 33.
[28] Veremos como se deu a construção midiática desse momento na Parte II.
[29] MASCARENHAS, op. cit., 2016. p. 210.
[30] MASCARENHAS, op. cit., 2016.
[31] PLACAR, n. 1270, 2004. p. 54-55