Plastic Football [Clientes versus Rebeldes]

Nota introdutória

O texto que segue corresponde ao Capítulo 4 do livro “Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol modernodisponível para download no site do Ludopédio. A obra foi lançada originalmente em 2017 e, portanto, não alcança acontecimentos que ocorrem nos anos seguintes relacionados aos três temas centrais do capítulo: os grandes bilionários que adquirem clubes europeus, a criação de novas ligas em países de pouca tradição futebolística e, mais importante nesse momento, os inúmeros clubes-empresa que povoam o futebol brasileiro.

Da data do lançamento do livro até a publicação desse trecho aqui NaBancada.Online, três casos merecem atenção, a ponto de atualizar o que foi escrito à época:

  • o Cuiabá Esporte Clube, clube-empresa do Mato Grosso fundado em 2001, mas adquirido por industriais da região, alcançou o acesso para a Série B nacional, após se consagrar campeão de 8 dos últimos 10 campeonatos estaduais; 
  •  o Manaus Futebol Clube, clube do Amazonas, fundado em 2013 por ex-dirigentes do futebol local  – mantém caráter de associação, mas é controlado de forma privada por seus dois únicos associados -, conquistou o acesso à Série C do Campeonato Brasileiro em 2019; 
  •  a gigantesca austríaca Red Bull abandonou seu primeiro projeto “RB Brasil”, para adquirir o Clube Atlético Bragantino, planejando o “RB Bragantino” e assimilando a vaga dessa instituição na Série B do Campeonato Brasileiro.

Para além do deslocamento do eixo de formação desses times de ocasião – saindo do eixo RJ/SP/MG e seguindo para capitais periféricas -, o segundo caso, do Manaus FC, é importante de se apreciar por se tratar de uma experiência que manteve o formato de associação civil. As motivações, objetivos e métodos de seus promotores, no entanto, seguem semelhante aos clubes-empresas. 

 

Capítulo 4

Plastic Football

 

A virada dos anos de 2000 para 2010 representou mais do que uma continuação ou mero aprofundamento daquilo que acabamos de tratar no capítulo anterior. O futebol-negócio, ou futebol-empresa, ou “futebol em tempos neoliberais”, aparenta estar atravessando uma nova etapa que se mostra totalmente em aberto. O objetivo desse último capítulo é avaliar eventos mais recentes e buscar captar algumas tendências que se anunciam para o futebol no decorrer desse século XXI.

Nas próximas páginas trataremos de três elementos que compõem parte daquilo que optamos por chamar de “Plastic Football”, ou “futebol de plástico”, por representarem uma faceta dessa grande indústria que esgarça as tantas contradições do processo de mercantilização de todas as relações sociais. Veremos como esses elementos extrapolam o que até então se via como aceitável dentro dessa indústria, considerando, principalmente, que a viabilidade financeira desse esporte parece estar em cheque.

Usaremos essa metáfora para simbolizar algo sem vida, inorgânico, como flores de plástico que enfeitam os apartamentos frios e mal iluminados. Objetos que estão ali para simular algo que deveria ter vida, quando qualquer observador nota que se trata de mero enfeite artificial, de cores falsas e formas projetadas para imitar a realidade. Objetos feitos para enganar os sentidos, mas incapazes de fazê-lo.

Primeiro, trataremos da entrada sem precedentes de grandes investidores estrangeiros nos clubes europeus. Mais do que agentes econômicos alheios à história dessas instituições, veremos como em alguns casos o interesse desses passa muito longe da pretensão de lucrar com o jogo. Interesses diversos se mostram presentes no topo do futebol mundial, por meio do qual os valores astronômicos desembolsados em prêmios, transferências e salários vêm causando um grave desequilíbrio financeiro no futebol a nível internacional. Principalmente em clubes que gastam muito mais do que conseguem produzir ou arrecadar, respaldados pela total desregulamentação das finanças no mundo do futebol.

A segunda faceta que investigaremos são as ligas surgidas em recantos com pouca tradição futebolística por meio de grandes aportes de investimentos. Iniciativas diversas já poderiam ser detectadas ao longo da história do futebol, mas os anos de 2000 e de 2010 guardaram casos que surpreendiam seja pelo volume de dinheiro desembolsado, seja pela total artificialidade e distanciamento das verdadeiras tradições esportivas do país em que surgiam. Veremos como esses torneios podem estar indicando novas modalidades de organização financeira e esportiva que não se esgotaram e estão passíveis de reprodução nos próximos anos.

Por fim, deslocando essa discussão para o Brasil, trataremos dos clubes-empresa e clubes-prefeitura que se proliferaram no país nos anos de 2000 e ganham novos casos nos anos de 2010. Veremos como esses clubes geralmente se constituem em projetos de curto prazo, com objetivos políticos e econômicos bem específicos, e são extremamente prejudiciais para equipes de médio e pequeno porte que possuem grande torcida. Localizados em regiões economicamente mais favoráveis, esses clubes acabam “ocupando” o espaço de instituições históricas que não conseguem encontrar fontes de financiamento equiparável. Esse três elementos podem sintetizar o que detectamos como tendência para os próximos períodos, em prognósticos sobre os rumos da indústria do futebol.

Magnatas e barões

Em um exercício de ciência política, Kennedy & Kennedy assim concluíram a atual contenda política que toma corpo no futebol europeu: “A UEFA pertence a uma típica perspectiva política europeia da socialdemocracia, a economia política que se funda na promoção dos interesses do capital produtivo contra os interesses do capital financeiro”.84

Os autores se referiam a um confronto que se instaura desde 2009, quando o então presidente da entidade europeia, o ex-jogador francês Michel Platini, promove uma ofensiva pela moralização e racionalização dos gastos exorbitantes dos grandes clubes do continente, que estariam gerando uma inflação sem precedente nos valores do jogo.

O ataque da UEFA acontecia exatamente porque toda transformação ocasionada a partir do processo de empresarização do futebol europeu resultou na formação de ligas de clubes nacionais dissociadas das antigas federações, e proporcionou o surgimento da European Club Association (ECA), uma associação dos principais clubes do continente europeu. Essa entidade se tornaria uma força política capaz de alterar ao seu gosto o formato da Champions League, maior torneio de futebol do mundo, diversas vezes, aumentando o numero de vagas para os países mais fortes, reduzindo vagas para os menores, criando diversas fases preliminares para “filtrar” os competidores, etc. A ECA foi fundada ainda em 2008, buscando articular clubes de um numero maior de federações do que aquele que até então se chamava o “Grupo dos 14”.85 De todo modo, a entidade segue defendendo os interesses financeiros dos mais ricos clubes locais, chegando a criar a iniciativa de fundar a “European Super-League”, um torneio ainda mais elitizado e restrito para essa “nata” do futebol europeu.

A movimentação de afastamento dos clubes das tradicionais federações e entidades gestoras não é algo muito novo. Porém, é importante entender que a reação da UEFA pela aplicação de um “fair-play” financeiro – inclusive acompanhada de diversas organizações de torcedores – tinha como pano de fundo uma realidade que merecia real preocupação. Ainda que muito dos interesses que rondam a ECA seja exatamente de abocanhar valores cada vez maiores dos bilhões que o futebol já movimenta com o televisionamento e agora o uso de outras plataformas, há, também, um outro perfil de dono de clube que pouco tem mostrado interesses lucrativos. Há alguns anos, determinados clubes não mostravam balanços financeiros positivos86 e os seus donos eram, em um número cada vez maior, investidores que pouco se interessavam pelo futebol. Clubes europeus estão constantemente na mira de barões do petróleo e sheiks, assim como uma variedade de grandes grupos de investimento desejosos de desembolsar grandes valores na formação de elencos e na infraestrutura dos clubes não apenas como uma forma de aprimorá-los, mas para um meio para se infiltrar nas economias nacionais e finalmente atuar nos seus investimentos principais.

Da Península Arábica – Emirados Árabes Unidos (EAU), Qatar, Bahrein, Kuwait, Arábia Saudita e Omã – também tem chegado muito dinheiro para o futebol europeu. Tais países, ricos em petróleo, são governados por famílias que se cultivam há décadas no poder. Mantêm fundos soberanos que reúnem alguns trilhões de dólares, e, entre seus negócios, está o futebol. Um exemplo é o Sheik Butti Bin Suhail Al Maktoum, membro da família real do Dubai, que investiria pesado no modesto Getafe da Espanha. Anos depois viria o Sheik Abdullah Bin Nassar Al-Thani, do Catar, que faria imensos investimentos no espanhol Málaga. O Sheik Nasser Al-Ghanin Khelaifi também se valeu dos recursos da Qatar Investment Authority para se tornar proprietário do clube francês Paris Saint-Germain, no qual investiu pesado para contratar grandes estrelas do futebol mundial no período.

O destaque que deve ser feito especificamente para os investimentos vindos do petróleo do Oriente Médio é o quão notável tem sido o esporte enquanto “ferramenta de relações exteriores” desses regimes. Diversas outras modalidades esportivas recebem recursos de patrocínio ou anúncio de empresas como a Fly Emirates (do clã Al Maktoum). Esses investimentos também são vistos na camisa de grandes clubes de futebol, como é o caso do primeiro patrocínio de toda a história do Barcelona, cedido à Qatar Foundation. Vale lembrar que esse país será a sede da Copa do Mundo de 2022, em que pese a total ausência de tradição no futebol.

Diferente do tratamento dado pelos poderosos países ocidentais aos regimes autoritários da região, os emirados-capitalistas conquistam apoio e prestígio, tendo seus crimes aos direitos humanos sistematicamente ignorados pelos países mais poderosos (sorte não encontrada por muitos ditadores de países vizinhos com registros bem menores de abusos, na Líbia, Egito, Irã e Iraque, por exemplo).

Outro tipo comum de investidor bilionário dos últimos anos são os novos oligarcas da Rússia pós-soviética. Uma companhia de energia local, a Gazprom, é a proprietária do clube de futebol Zenit St. Petersburg e a patrocinadora do alemão Schalke 04 e do sérvio Estrela Vermelha. É também anunciante do inglês Chelsea, clube que pertence a Roman Abramovich, antigo dono da Sibneft, empresa que se tornaria a Gazprom. O oligarca russo se notabilizou por derramar mais de 2 bilhões de euros no clube quando da sua chegada. Outro indivíduo que teve o mesmo percurso de enriquecimento com a privatização de bens estatais da antiga União Soviética foi Abusaidovich Kerimov, que também fez investimentos imensos no russo Anzhi, mas sem muito sucesso.

Há ainda uma série de casos de investidores “forasteiros”. A Premier League inglesa, origem dessa “invasão”, tem um panorama bem distinto de nacionalidades. Dentre os considerados 29 grande investidores dos 20 clubes da Premier League em 2016-2017, apenas 11 são ingleses. Dentre os 18 estrangeiros, estão investidores de EUA (6), Rússia (3), China (2), Irã, Egito, Tailândia, Emirados Árabes, Suíça, Itália e Noruega. Na divisão de acesso ainda se encontram chineses, malaios, indiano, italianos e kuaitianos.

O que se nota é que o futebol aparenta atravessar uma fase de retorno ao tempo em que atraía interesses de ordem política numa escala superior aos interesses diretamente econômicos. Pode-se entender que há uma retomada de sua instrumentalização para fins de “capital social”, que seria utilizado em fins terceiros. Uma indústria fictícia do esporte, na qual o ganho financeiro não se faz claro, e os interesses passam muito longe do jogo em si. “Um exame forense do estado do topo do futebol europeu destaca, revelando outro e diferente quadro do pretenso sucesso comercial: é o da dívida, da falência, da perda de balanço competitivo”.87

No atual estágio de desenvolvimento da indústria do futebol, tem-se tornado difícil mensurar o que realmente há de negócio num investimento tão dispendioso que só tem servido a objetivos que não possuem absolutamente nada a ver com o esporte. Mas há ainda outros aspectos do plastic football que nos interessam.

Ligas de plástico

Nos anos de 1990, diversas ligas de países com menor tradição futebolística receberam grandes investimentos ou foram fundadas com fins puramente comerciais. O caso japonês, do qual fez parte o brasileiro Zico; mais adiante, a retomada da Major League Soccer nos Estados Unidos; e, posteriormente, o eldorado dos petrodólares do futebol de Qatar e Arábia Saudita, deslocou uma série de bons jogadores de todo o mundo com a oferta de ótimos salários e gordos pagamentos aos clubes que detinham seus direitos econômicos. Nos anos de 2000, destacaram-se da Rússia e Ucrânia, que receberam recursos dos supracitados novos oligarcas, e acabaram tomando espaço de ligas medianas como a holandesa e portuguesa como primeiro destino europeu de muitos jogadores brasileiros.

Algumas dessas ligas ainda seguem vivas, outras passando por um novo momento de investimento pesado e outras minguaram sem se consolidar como atração para além do dinheiro. Atualmente, dois casos merecem atenção redobrada por superarem essas anteriores quanto aos recursos e à ousadia do modelo de negócio aplicado. Na China, uma Super Liga foi fundada por volta do ano de 2004, mas, em 2011-2012, passa a ganhar novos contornos após intervenção estatal por conta de escândalos de corrupção envolvendo manipulação de resultados. O futebol entraria, segundo uma análise da BBC, na lista das quatro áreas “inusitadas” em que a China resolveu investir os seus mais de 3 trilhões de dólares em reservas.88 Para além dos quase 100 jogadores estrangeiros atuando na divisão principal, o país começa a investir em diversos centros de formação de jogadores. Para a temporada de 2017, o jogador brasileiro Oscar foi envolvido numa transação de nada menos de 280 milhões de reais com o Chelsea, passando a ser o terceiro atleta mais bem pago do mundo. Lionel Messi chegou a receber uma proposta de 1 milhão de reais diários para jogar nesse novo eldorado.

Os valores surreais que envolveram as notícias da liga chinesa, entretanto, só interessam mesmo aos atletas. Seu torneio continua restrito ao mercado interno, em que valha o seu tamanho: cerca de 1,35 bilhão de habitantes. Número gigantesco que só se compara ao de outro país que também começou a ver a importância de desenvolver o esporte mais consumido do mundo em suas fronteiras: a Índia vem aos poucos estruturando a sua própria Super Liga, com particularidades ainda mais curiosas do que o caso chinês, apesar dos valores mais tímidos.

Com mais de 70 anos de fundada, a I-League, gerida pela All Indian Football Federation (AIFF), tinha dificuldades em superar o críquete na preferência dos mais de 1,2 bilhão de indianos. Eis que surge uma iniciativa de remodelamento do futebol indiano pela IMG-Reliance, uma joint-venture formada pela Reliance, maior empresa do país, junto ao gigantesco conglomerado coorporativo dominado pela IMG Worldwide.89 A empresa já havia anunciado uma parceria semelhante com a Federação de Basquete da Índia por 30 anos, da qual seria responsável pelo desenvolvimento do esporte no país, desde a formação de atletas até a sua liga profissional e de todos os aspectos de comercialização das marcas que envolvem o esporte no país. No caso do futebol, apesar dos termos do contrato serem semelhantes, a realidade é mais agressiva: a parceria assinada por 15 anos previa a cessão de absolutamente todos os direitos comerciais relacionados à AIFF – incluindo a seleção nacional e a Primeira Divisão –, passando agora às mãos da IMG-Reliance.

O que aconteceu posteriormente foi bem diferente: a organização de um torneio de duração de dois meses, com clubes selecionados pela própria empresa, que seriam franquias vendidas a milionários e bilionários locais. O colunista Bhargab Sarmah, do Huffignton Post, questionou, com preocupação, como as principais decisões sobre o futebol indiano estariam passando por fora dos seus principais “stakeholders”, isto é, os clubes. Mas o mais curioso: também gestora da I-League, na qual jogam os clubes mais tradicionais do país, a própria IMG-Reliance passaria a organizar outro torneio paralelo com clube-empresas novos. Para explicar esse caso surreal, Sarmah fez a seguinte analogia: “por uma lado você vai para a cama com as grandes corporações que participarão da ISL, e por outro lado você manda os principais clubes locais na I-League para dormir no chão”.90

A estrutura que se assemelha à Major Soccer League, a liga norte-americana, propõe que os clubes sejam franquias de uma grande empresa controlada pela IMG-Reliance, e funcionará como uma forma de abafar os antigos clubes diante dos bilhões que estão sendo investidos em jogadores, marketing, atenção midiática e holofotes para a nova liga. Cada uma das oito franquias da ISL foi vendida ao preço de 25 milhões de dólares, a grupos econômicos ou investidores profissionais, que iam desde estrelas de Bollywood até empresas de telecomunicações e mesmo clubes de futebol (sendo um deles da própria I-League).

A gigante IMG também fez investimentos em matéria de marketing esportivo em outros países, inclusive o Brasil. Em parceria com o grupo EBX, do logo falido empresário Eike Batista, formaram a IBX, empresa que teria como principal objetivo gerir a Arena Maracanã após a Copa do Mundo. Não deu muito certo, mas outros investimentos chegaram a gerar frutos antes do encerramento das atividades da iniciativa: contratos de organização da Ultimate Fight Championship (UFC) no Brasil; agenciamento de marketing da Confederação Brasileira de Basquete (CBB); além de cuidar da imagem de atletas como Neymar e o surfista Gabriel Medina.

A liga da IMG Reliance Star (agora uma nova parceira) segue existindo no mesmo formato de pouca duração, possivelmente por se tratar de uma estratégia para atrair jogadores com maior facilidade. Por se dar no meio da temporada europeia, a nova liga de plástico indiana não compromete o plano de muitos jogadores e treinadores em atuar nas principais ligas na sequência da temporada.

As ligas dos países com a maior população do mundo, apesar de diferentes configurações, ainda são apostas que vão depender de diversos fatores, mas indicam uma tendência a momentos cíclicos de grande investimento nos rincões mais alheios à história do futebol, que envolvem interesses que ainda passam muito longe do conhecimento geral. Por um lado, o poder econômico chinês ainda provocará grande deslocamento de atletas e treinadores, com propostas salariais imbatíveis até para algumas ligas europeias; por outro lado, o modelo de surgimento relâmpago da nova liga indiana pode ser de parâmetro para o surgimento, talvez, de muitos outros torneios de baixa frequência e com pouca ou qualquer relação com a estrutura histórica do esporte nacional.

Passemos, então, para uma terceira dimensão de uma realidade “pós-neoliberal” da indústria do futebol, que entendemos ser importante para compreender o que “sobrou” das inciativas de mercantilização agressiva do futebol que tratamos no capítulo anterior. Esta, agora, compete diretamente ao Brasil.

Clube-empresa e clube-prefeitura

Como falamos anteriormente, a empresarização dos clubes foi um tema marcante no futebol brasileiro nos anos de 1990. A abertura e o incentivo para a formação de novos clubes com o formato de sociedades empresariais gerou um boom que pôde ser notado principalmente nos anos 2000. Antes de tratarmos deles, porém, é importante definir o “conceito” que aplicaremos aqui.

Clube-empresa, de um modo geral, é uma instituição esportiva criada com fins lucrativos, a partir da articulação de diversos atores políticos e econômicos em um – ou para um – determinado contexto histórico. Boa parte desses clubes, no Brasil, durou menos de uma década e teve total incapacidade de criar raízes nas comunidades, cidades ou regiões em que atuavam. Alguns chegaram a ter destaque nacional por breves anos, montar bons elencos que depois se dissolviam em negociações rápidas. Boa parte dos casos que listaremos são oriundos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Os clubes-prefeitura, por sua vez, devem ser vistos como iniciativas ligadas a gestões pontuais de alguns municípios, recebendo incentivos públicos, e logo são abandonados, na medida em que o grupo político deixe o controle da máquina pública. Esses modelos são muito vistos em cidades do interior do Brasil, estando mais restritos às disputas dos campeonatos estaduais. A enorme quantidade de casos nos impede de fazer um diagnóstico mais preciso, portanto, focaremos na investigação do primeiro.

Ademais, é lógico que o fato de uma instituição ser “clube-empresa” não exclui a possibilidade de ele também comportar aspectos do clube-prefeitura. Muito pelo contrário, a grande maioria dos casos conta com uma relação estreita desses agentes econômicos com o poder local, mas a dimensão do empreendimento e as formas de gestão podem trazer diferenças sobre o seu funcionamento em longo prazo.

Há muito tempo as pequenas agremiações com proprietários atraem o interesse do conhecido “empresário de jogador”. Essa figura, que surge por volta dos anos de 1990 no Brasil, se aproveita da modernização das leis trabalhistas proporcionadas pela Lei Pelé e passa a ser um agente econômico que intermedia o interesse do atleta com relação aos clubes. Mais do que um representante do jogador, esse empresário (ou agente) também possui grandes interesses financeiros em jogo. Clubes-empresa sempre funcionaram como uma “vitrine” prática e de rápido acordo, ao contrário dos conflitos de interesses encontrados nos grandes clubes.

Da mesma forma, essa estrutura de empresa privada também elimina uma série de problemas encontrados em clubes tradicionais de estruturas associativas. Sem a necessidade de debates mais amplos dentro de suas instâncias (conselhos, assembleias, etc.), os clubes-empresa tendem a possuir gestões sem conflitos ou disputas. Ao mesmo tempo, e por motivações óbvias, não experimentam a pressão e a cobrança da torcida nos momentos de derrotas. Há casos de clubes que até trocaram de cidade, como é o caso do paulista Grêmio Barueri que mudou para Grêmio Prudente; do mineiro Ituiutaba que mudou para Varginha e se tornou BOA Esporte; mais recentemente, o Oeste, de Itápolis, e depois Osasco, que mudará para Barueri.

Essas características favoreceram o crescimento de muitos clubes-empresa no Brasil, que tiveram seu ápice na década de 2000. Desde a adoção do formato de “pontos corridos” no futebol brasileiro, em 2003, o número de clubes-empresa nas duas principais divisões nacionais girou em torno de 8 clubes, sendo quase sempre 7 deles na Série B e um na Série A. O número recorde foi de 9 clubes-empresa disputando juntas a Série B de 2007, praticamente metade dos participantes do torneio. Apenas nas edições 2005 (Brasiliense e São Caetano) e 2009 (Santo André e Barueri) dois clubes-empresa chegaram a jogar juntos a Série A.

Participaram da Série B ao menos uma vez: Bragantino, Guaratinguetá, Ituano, Marília, Mogi Mirim, Paulista, Oeste, União São João (de São Paulo); Boa Esporte/Ituiutaba (de Minas Gerais); Duque de Caxias e Macaé (do Rio de Janeiro); Gama (DF); Luverdense (MT). Participaram da Série A: Barueri/Prudente, Santo André e São Caetano (de SP); Chapecoense (SC), Brasiliense (DF), Ipatinga (MG).

Apesar da redução considerável dos últimos anos – apenas quatro clubes-empresa na Série A e B de 2016 e 2017 –, é pouco provável que não surjam novos empreendimentos do mesmo porte, afinal, esses clubes possuem curto tempo de vida. Dentre os que foram listados entre os que já participaram da Série A, nada menos que quatro deles praticamente encerraram as suas atividades, ou se encontram nas últimas divisões dos campeonatos estaduais de origem. Outros seis, dentre os listados como participantes da Série B, passam pela mesma situação, não se encontrando nem na disputa da Série D de 2016.

A verdade é que boa parte desses clubes não conseguiu estabelecer raízes ou mesmo articular um quadro social capaz de mantê-los em atividade mesmo nos momentos mais difíceis ou quando da desistência de investimentos da parte de seus proprietários. São clubes que surgem de canetadas, vivem de negócios frívolos e não contribuem em basicamente nada para o futebol brasileiro enquanto elemento cultural.

Vale destacar que a maioria dos clubes listados é oriundo dos estados mais ricos do Brasil. São grandes economias, capazes de articular capitais diversos para desenvolver tais projetos. O caso de São Paulo merece ainda mais destaque por se tratar do único estado onde o campeonato estadual é de fato rentável; e é exatamente a federação da qual saíram os dois últimos presidentes da CBF: José Maria Marin e Marco Polo Del Nero. Talvez um estudo mais profundo seja capaz de estabelecer uma relação entre o surgimento e o financiamento desses clubes menores (em detrimento de tantas equipes paulistas de médio porte que são tradicionais e de grande torcida) com a captação de poder político desses dirigentes no xadrez político do futebol nacional.

O que importa é ressaltar o quanto a existência desses clubes tem sido prejudicial para clubes de grande torcida que se localizam em estados mais pobres. No Pará, uma das primeiras escolas brasileiras do futebol, o Paysandu pena para se manter na Série B, e o Remo nunca passou da Série C desde o início dos pontos corridos em 2003. Os principais clubes do Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas, passam por problemas semelhantes, disputando espaço com clubes de bem menor tradição, mas com contas bancárias muito maiores.

Mesmo clubes de porte mediano na escala nacional já passaram pelo mesmo problema, com destaque para os grandes da região Nordeste. Vitória, Bahia, Sport, Santa Cruz, Ceará e Fortaleza (esse último na Série C) já deixaram de disputar a elite do futebol nacional por conta de vagas perdidas para clubes-empresas que deixaram de existir menos de cinco anos depois.

Essa faceta brasileira do que optamos por chamar de “plastic football” encerra a nossa empreitada sobre a história do futebol a partir da localização do clube, do jogador, do estádio e da torcida em tantos e distintos momentos. Como anunciado, buscamos tratar desses movimentos com atenção à conjuntura material de cada contexto, salientando os processos que se antecipavam no centro econômico da indústria e observando o movimento dos distintos atores econômicos que se faziam presentes e se confrontavam, alterando os rumos do futebol.

A partir daqui investigaremos de forma separada o estádio e a torcida, para captar os marcos históricos e elementos político-econômicos que nos trazem à realidade que decidimos destacar, da formação dessa nova cultura torcedora, dialética por princípio: por um lado, da mercantilização do futebol e do controle do público dos estádios e seu apassivamento e, por outro lado, da tomada de uma postura ativa e de resistência dos torcedores no enfrentamento dessa mesma mercantilização que agride e exclui.

Notas

84. Do original: “UEFA belongs within the European-wide political perspective of social democracy, the political economy of which is founded on promoting the interests of productive capital against those of finance capital”. Cf. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 29.
85. SIMÕES, I. Em jogo ruim, bola dividida. Outras Palavras. 23 set. 2011.

86. Já são dezenas de casos de clubes de ligas ricas ou medianas que foram à falência, como o holandês Haarlem, o italiano Parma, o espanhol Sporting Gijón e o inglês Coventry City. Cf. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 26-27.

87. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016.p. 25.
88. BBC Mundo. Quatro áreas inesperadas em que a China investe para ser número 1 do mundo. 27 fev. 2016.
89. SIMÕES, I. Um torneio monstruoso de plastic football surge na Índia. 14 out 2014.
90. SARMAH, B. Indian Super League – IMG-Reliance’s Short-Sighted Endeavor Will Hamper I-League.Huffington Post. 1 mai. 2014.

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